“Sofre porque vê”

Escrevo e faço já a associação para o filme que ontem comecei a ver: “Uma vida escondida“: a beleza das paisagens da Áustria, uma família modesta, feliz, que vive da terra e vive o céu na terra (antes de se abater a escuridão nazi). Será isso possível? Será possível neste mundo aspirarmos a uma vida segura? Significará isso retiramo-nos para a aldeia, para a natureza, para longe do convívio e do previsível mal que os homens nos possam fazer? A sombra da morte e do sofrimento seguem-nos onde quer que vamos: aqui um acidente, ali uma doença misteriosa que se desenvolve, acolá problemas com vizinhos, mais além, falta de dinheiro. Não há nenhum lugar seguro para onde possamos fugir e “encontrar refúgio“, como diz o salmo. Creio que foi isso mesmo que Siddhartha Gautama experimentou quando saiu do palácio e deu de caras com a vida na sua contingência, miséria e sofrimento. A demanda da sua vida será a da compaixão, da iluminação e de alguma forma de libertação desse primeiro princípio da filosofia budista: viver é sofrer. Por esta razão desconfio do otimismo “de pacotilha” que navega uma narrativa fechada e pueril de que podemos, apesar de tudo. Podemos, efetivamente, mas o caminho para esse podemos não pode ser feito sem a espessura, a profundidade e a sabedoria do sofrimento que nos revela coisas insuspeitadas.

Embora tenha alguma dificuldade em empatizar, como agora se diz, com alguma música de Nick Cave, fico deslumbrado quando o oiço falar da sua vida após a morte prematura do seu filho Arthur. E uma das coisas mais assombrosas que diz é que só se tornou mais completamente humano após a morte do seu filho. Isto não é pouco! Ontem quando lia que o escritor francês George Bernanos desdenhava, do “otimismo americano“, como o entendo! Sei que esse pensamento não está na moda, mas asseguro-vos que tem lastro religioso, filosófico, literário e existencial. Não é o pessimismo, mas uma consciência muito aguda (“sofre porque vê“, disse Fernando Pessoa) da tragédia que é ser uma casca de noz num mar revolto. Tragédia maior que essa só mesmo a dos néscios e insensatos que constroem uma “narrativa” de que tudo vai ficar bem: oxalá que fique e ficará, como também disse a mística Juliana de Norwich (“All shall be well, and all shall be well and all manner of thing shall be well.”) mas a que preço!

Feliz de ti se atingiste a velhice e silenciaste a ferida que latejava, tu que lutaste denodadamente para dominar as variáveis, calafetar a infiltração da água, ficar surdo ao caos da guerra, da violência, da morte.
Feliz?

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s