seis de abril

É fácil, quando se olha para épocas passadas, ser lúcido relativamente ao que sabemos que estava errado. Fazemo-lo com a ferramenta da distância temporal e com a nossa escala de valores, a nossa bitola do que entendemos estar certo e errado. A minha grande questão é a de saber quais são as grandes mentiras que estão montadas até ao osso das nossas existências e que nós não estamos a ver. Chamo grandes mentiras as que envolvem valores, a esfera pública e a privada, os meios de comunicação. Essa grande mentira tem o poder de movimentar multidões, de ter gente militante a lutar por ela e de poder ser acreditada como intocável e apodítica. Que instâncias críticas e que métricas temos hoje que possam servir de crivo? E a partir de que lugar?

Paira à tona de água

Paira à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.

Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,

Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta
Não sabe o que quer.

É uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!…

Fernando Pessoa

quatro de abril

– O cristão tem a chave para o fim da história, embora não a segure na mão: ‘Cristo será tudo em todos’. De que forma, não o sabemos. Esta realidade não nos deve abstrair ne adormecer face às narrativas catastrofistas que campeiam na nossa cultura e que estão a aterrorizar não poucas pessoas, particularmente os jovens: “Um inquérito realizado em 2021 a pessoas com idades compreendidas entre os dezasseis e os vinte e cinco anos em todo o mundo revelou que 56% concordavam com a afirmação: “A humanidade está condenada”.

três de abril

  • Para S. Tomás de Aquino, há três critérios que devem ser usados para uma aproximação ao conceito de beleza: integridade, claridade (brilho), consonância. Três ideias que podem orientar neste tempo de confusão e profusão da fealdade.
  • S. Agostinho fala do pecado com a expressão: “incurvatus in se”: a pessoa que está curvada sobre si mesma. Usamos hoje expressões como “olhar para o seu umbigo” ou “aquela pessoa é um narcisista”. A ideia é sempre a mesma: há em nós uma apetência, consciente e inconsciente, para fazermos de nós mesmos um ídolo.
  • Ao ouvir a escritora Katherine May num podcast, retive que, como figura famosa que é, tem uma perceção muito vívida, que recebe dos contatos dos leitores, do sofrimento e da dor nos quais tantas e tantas pessoas vivem. Esta realidade, que eu já intuía é assustadora: solidão, sensação de insignificância, perda de sentido para a vida, cansaço. A autora reconhece que não pode responder ao mail dos fãs por se sentir incapaz de lidar com tantas experiências duras e avassaladoras. Jesus também levantara uma vez os olhos e sentira as entranhas estremecerem-lhe por ver a multidão que o seguia tão cansada e abatida como ovelhas sem um pastor. Não terá ele, hoje, o mesmo olhar compassivo? Não dirá ele hoje a cada um de nós, a mim e a ti: se ao menos tu soubesses o que te pode trazer a paz? E não dirá também ao ouvido do fatigado e triste: se conhecesses o dom que Deus tem para te oferecer… Não deixo de perguntar o que estamos nós comunidade dos crentes, a fazer ou não fazer para acolhermos esse dom e deixar que nos incendeie e o possamos partilhar como uma pequena luz, de vela para vela.

Platitudes

  1. Que juízo podemos fazer do nosso próprio tempo? Quão mergulhados estamos no aqui e agora para não termos a lucidez com que cortantemente emitimos julgamentos sobre os nossos antepassados? Lamentaremos um dia não termos visto porque não estivemos atentos, despertos, vigilantes, como pede o Médico? Terão os alemães, na ascensão do nazismo, tido a capacidade, quando a mentira é coletiva e pervasiva, de ver a patologia vírica espalhar-se? N. Berdiaev falava, nos anos trinta do fenómeno de uma “possessão coletiva demoníaca” que, como uma torrente, tudo leva à sua frente.
  2. Talvez precisemos de sair do frenesim ininterrupto, limitar os canais de informação para os nossos sentidos, sair ao deserto, jejuar de tudo. Talvez aí, um olhar novo nos permita ver. Talvez aí, uma palavra saída do combate com o invisível acenda na noite uma clarão de esperança, ainda que um very light na calma sepulcral noturna do oceano.
  3. São tantas as vezes, no Antigo Testamento em que Deus, qual amante esquecido censura o seu povo na sua loucura de diversão e idolatria. Que nos dirá hoje, sentados, enterrados e sonolentos num sofá?
  4. O perigo de uma vida ou uma comunidade sem Deus não é algo acessório ou ornamental, como se o ateísmo eliminasse uma “patine” ou um verniz que tornasse mais civilizada a nossa convivência. A ausência é anterior a esses fatores de somenos, ou mesmo até à consideração da perda de referenciais morais que a religião inevitavelmente traz. Antes de tudo isso e acima de tudo isso há o problema do corte, da amputação. As metáforas bíblicas ajudam: somos uma cisterna que não retém água; vivemos errantes, sem pátria ou casa como uma ovelha tresmalhada; somos uma videira onde não corre seiva cujos ramos correm o risco de mirrar. É o alento que falta, muito mais que a nostalgia da cristandade ou a perda de referenciais morais. E este corte é trágico.
  5. Daquilo que leio, da música que ouço, das séries ou filmes que vejo – tudo mostra o quanto o ser humano é um vulcão de emoções, paixões, dores. cicatrizes e esperanças. Porquê pretender uma espécie de “normalização emocional” que uma certa visão “burguesa” da vida quer mostrar como única certa?
  6. Se a arte não tiver no seu centro um influxo de catarse, bastará que se diga que serve para consciencializar ou chocar a pessoa? Não será viver o colecionar cargas e cargas sobre os ombros e não terá a arte, como o amor, a função de realizar essa catarse que nos permita começar sempre de novo, depois de chorar ou rir ou gritar de admiração?

trinta de março

Ontem, na celebração da paixão de Cristo, observava as pessoas que se dirigiam em fila para a adoração da Cruz. Umas genufletiam, outras ajoelhavam por terra, outra beijavam o crucifixo, outras ainda faziam uma saudação profunda. Jovens, crianças, homens e mulheres, pessoas de mais idade, até uma pessoa de cadeira de rodas. Todas elas em adoração e reverência diante de um crucificado. No nosso dia a dia esforçamo-nos por parecer maiores que somos, reinamos imaginariamente. Ali diante da cruz, todo o joelho se dobra diante do Senhor. Li algures que a Igreja era um dos últimos redutos onde se praticava a diversidade: ricos e pobres, novos e velhos, homens e mulheres. É belo. Um dia será explosivamente verdade: os povos acorrem ao monte do Senhor para o adorar. Todos.

Trevas

“O que foi antigamente manhã limpa
Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja face me é oculta.”

Sophia de Mello Breyner

Solilóquio do anti herói

Quando me levantei, esta manhã, sabia que o meu destino estava marcado. Sente-se sempre alguma coisa no ar. E eu sentia-o. Como raposas a saírem das tocas, como os chacais a farejarem a presa, sabia que tudo se estava a conjugar para a minha perdição. Aqueles que me detestavam apareceram finalmente. A raiva guardada, as humilhações sofridas diante da força da verdade – tudo agora conflagrava à minha volta numa explosão de ódio e ressentimento. Era o momento da vingança. Os meus vizinhos começavam a desprezar-me abertamente. Aqueles como quem vivera, nos dias luminosos da minha vida, em doce intimidade, escolhem agora o seu lado: a maré começa a mudar e o desprezo é o que têm para oferecer. Sinto o chão fugir debaixo dos pés. Todo o humano precisa de alicerces onde assentar a sua vida, mas agora, como um cambaleante, falta-me parede onde apoiar a vacilante mão.


Saio à praça e os olhos desviam-se de mim: ninguém me fixa frente a frente, afastam o olhar e os passos, sinto a toda a volta o desprezo, evitam passar por mim. Terei eu lepra? Ah, como desço tão rapidamente ao mais triste da condição humana. Essa matilha de cães expulsa-me da cidade, do lugar da vida, das palavras, do amor. Sinto-me empurrado para fora dos muros da praça central. Como quem chuta, distraído, um objeto sem valor ou abandonado, assim me sinto: estou aturdido e confundido. Onde está o meu Rochedo inabalável, que terei feito para que até as crianças apartem de mim o olhar?


No entanto… sei que a calma chama da lamparina de azeite não se extinguirá nunca. Consigo ver, por trás do cortejo abjeto, a manhã azul, o sol estupendo, o calor que toca a pele e refaz a alma. Penso nos meus companheiros de infortúnio, os atirados fora pelos inimigos, os abandonados a quem gritaram: és imprestável.


Do fundo do poço, escuto: é a voz que vem do futuro, a música inaudível para os inimigos do amor. Ela fala do mais seguro e firme abraço alguma vez oferecido nesta terra: gratuito, eterno, inamovível. Do fundo da minha alma sobe uma canção: tende coragem e animai-vos, todos vós que esperais no Senhor!

Em Vós, Senhor, me refugio,
jamais serei confundido,
pela vossa justiça, salvai-me.
Em vossas mãos entrego o meu espírito,
Senhor, Deus fiel, salvai-me. Refrão

Tornei-me o escárnio dos meus inimigos,
o desprezo dos meus vizinhos
e o terror dos meus conhecidos:
todos evitam passar por mim.
Esqueceram-me como se fosse um morto,
tornei-me como um objeto abandonado. Refrão

Eu, porém, confio no Senhor:
Disse: «Vós sois o meu Deus,
nas vossas mãos está o meu destino».
Livrai-me das mãos dos meus inimigos
e de quantos me perseguem. Refrão

Fazei brilhar sobre mim a vossa face,
salvai-me pela vossa bondade.
Tende coragem e animai-vos,
vós todos que esperais no Senhor.

Salmo 30

caminhada

Caminhada matinal. A cidade está ainda sossegada. Desço de noite e regresso já de dia. É uma alegria profunda: vem o vento à minha cara, as nuvens cinzentas e carregadas com os seus múltiplos matizes; a vastidão do mar, as ondas que rebentam, cheias de espuma. Os pássaros cantam e saúdam um novo dia. Eles são os mestres: o seu existir é cantar.

Tudo vejo e sorvo mas um muro alto e grosso interpõe-se entre mim e tudo. Não consigo ouvir a voz que aponta para a origem. Definitivamente, sou um exilado. Quem quebrará as portas de bronze que abrem para o palácio?