Enxurrada

Um breve apontamento deste dia.


O pobre distraído sobe as escadas, mergulhado nos seus pensamentos, preso na estreita dimensão dos problemas e das tarefas do dia, tão chão quanto o chão que pisa. Levanta o olhar, encontra uma alma em sangue: “o meu pai morreu ontem”, disse-lhe ele.


De repente, a frágil construção dos dias, essa tentativa tão pueril quanto ilusória de se agarrar a dois réis de segurança – tudo tomba com estrondo. Qualquer coisa do mistério mais profundo e inexplorado da vida é atirado contra o néscio, como um forte tronco é arremessado contra a porta do castelo.


Eis a vida verdadeira, isto é, eis, em trinta segundos, a viagem vertiginosa rumo ao que de mais importante e decisivo a vida tem: o amor, a vida, a morte. Como se, de repente, todos os sons do mundo se calassem, ficando ali, a sentir o latejar de uma dor que tempos e tempos apenas ajudarão a sarar.


Por momentos apenas, tangencialmente, estas duas vidas encontraram-se nesse ponto entre o tudo e o nada. Depois de um abraço, cada qual vai ao seu caminho: um, imergindo sem freio no abismo do sofrimento; o outro, emergindo para a rotina, o acessório, a margem, as mãos vazias.


O insensato assomou à janela: implorou a um qualquer deus o dom da sabedoria, não fosse ele um dia morrer sem ter de todo vivido.

Um exercício

Vejo cinco casas. Uma delas recebe luz da parede lateral. Na parte da frente da imagem uma árvore de pequeno porte, praticamente despida. Por cima da casa mais iluminada, uma outra árvore cheia de folhas que também recebe luz do mesmo lado que a casa. Duas das casas possuem chaminé.


A imagem é noturna. Não se topa qualquer humano. Tudo parece calmo, silencioso, ordenado. As linhas geométricas das casas dão essa sensação de ordem e previsibilidade.


Certamente tratar-se-á de uma aldeia. Viverá lá alguém? Pela imagem, não há nada que indique a existência de vida, rotinas, sinais de que algo possa bulir.
Reparo no jogo do claro e do escuro: apenas a parede da casa e a copa altaneira da árvore recebem uma luz que vem da direita. Que luz poderá ser esta? Natural ou artificial?


Que terá pretendido o autor deste desenho? Descrever a calma da vida no campo? (E porque será no campo?) Será uma cena irrealista, geométrica, fria e sem vida? Ou antes um apontar para um centro de luz, de calor, gerador de vida e que escapa ao olhar do observador?


Quando vi esta imagem atraiu-me a depuração das linhas, a geometria, a ordem, a previsibilidade. A composição dos objetos pareceu-me quase intuitivamente apontar para um tempo e um lugar não históricos. Não será propriamente idílico ou arquetípico, mas ainda assim algo de irreal que aponta para um lugar fora do tempo e isso agrada-me: como se houvesse, flutuando, um ponto que me acompanha e me chama sempre para fora das vicissitudes e contingências do dia, em direção a um lugar que é sempre um não-lugar, não-lugar esse que é anterior à história, à consciência, à moral. Algo semelhante ao ventre onde um bebé é apenas proteção, calor e amor.

“Não não mereço esta hora”

Não não mereço esta hora
Eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
Que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
Tão antigo como os meus olhos
Talvez mesmo mais antigo que os meus olhos.

Ruy Belo

Um filósofo disse em tempos “chegamos sempre atrasados ao rosto do outro“, frase que daria para nos abeirarmos do seu significado sem chegarmos a ver o fundo, intuindo, apenas, que esse outro que está diante de mim é um mistério, inacessível a si e a mim, nunca um objeto de predação.

Lembrei-me deste poema breve de Ruy Belo hoje mesmo a propósito deste dia, um de tantos dias, de todos os dias onde chego incansavelmente de manhã e de quem me despeço à noite. Não estou à altura deles, de alguns, de um sequer. Cada um deles é demasiadamente precioso, extraordinário, especial e rico para que o possa apreender ou compreender ou apreciar. Chego sempre atrasado ao dia que estou a viver e, por vezes, nem chego a chegar. Não gostaria de um dia, já no leito de morte, ter de me confessar a essa enfermeira de serviço, murmurando que me arrependo (enquanto debito uma ou outra trivialidade) de não ter visto, não me ter apercebido, não ter dado valor, ter estado por demais alheado e ausente. Talvez nesse momento descubra, amargamente, que não estive à altura do dom que manou inesgotavelmente, mesmo (oh quão tarde o soube) nas horas mais negras da minha existência.

Chego sempre atrasado porque não vejo. Não vejo o oiro escondido sob a areia. Não vejo a dor, a noite, o sofrimento da multidão que, de forma muda, sempre me foi dizendo o quão afortunado foram os meus dias, tantos dos meus dias, todos os meus dias.


Não não mereço esta hora“. Não a mereço pela cegueira pertinaz, pela impenitência como modo de vida, pela cerviz dura e teimosa em não querer ver, ainda que me tenha estimado um qualquer arauto da luz e, sobretudo, pelo orgulho mais longevo que a totalidade dos meus dias.

Quem sabe? Talvez o anjo de todos os começos possa ainda redimir o irremissível e permitir uma nesga de esperança.

Thinking allowed!

No podcast que ou vi esta manhã, foi feita uma análise ao modo como aqueles que provêm das classes trabalhadoras e “ascendem” a uma carreira universitária, são discriminados. Também se refere a fenómeno da discriminação nas universidades “de elite” a partir de um trabalho de campo em quatro universidades, duas no Reino Unido e duas no Estados Unidos.


Porque gostei?


Porque aprendi algo de novo sobre uma realidade que desconheço; porque me faz estar mais atento a todas as formas de discriminação que subsistem; porque confirma a minha reflexão sobre o modo como as sociedades se organizam na perpetuação dos mesmos mecanismos: proteção gregária, desconfiança face àquele considerados “estranhos” ou de “fora”. Depois, nas entrevistas que o autor do programa faz a duas autoras sobre o tema do episódio de hoje (“Elite Universities – Working Class Students”) as entrevistadas falam de forma clara, sem “palha”, acrescentando informação. Também por isso vou tendo menos paciência para os podcasts em português, onde, por regra, se fala com má dicção, não se é objetivo e as ideias são repetidas (Portugal é definitivamente um país pequeno e provinciano).


É bom aprender.

Um “coach” para o espírito

Ouço uma entrevista com o treinador do nadador medalhado Michael Phelps. Num livro que escreveu sobre o caminho para o sucesso, desenvolve aquilo que designa por “O método“: um conjunto de passos para atingir um objetivo, preferentemente um grande objetivo. Fico sempre com uma primeira impressão de culpa por não ter nada na minha vida que se assemelhe a um empreendimento deste calibre: definir um grande objetivo e orientar a vida, os dias, meses e anos em função desse mesmo objetivo. Mesmo assim, reconheço o valor de quem se lança nessa empreitada. Calculo que a vida ganhe um sabor, um sentido de urgência e de desafio que deixa para trás a rotina, os prazeres e confortos de baixa estirpe bem como a autoindulgência.

Creio que no reino da vida espiritual, poderiam ser aproveitados ou recuperados certos princípios que estes “coaches” modernos aplicam aos seus pupilos. Desde logo, a noção de “coach“: alguém que conhece o seu pupilo, com quem conversa frequentemente e que o ajuda a superar-se, a melhorar, a não desanimar diante das dificuldades. Usando a terminologia da vida espiritual, não deverá ou deveria ser esse o papel de um “diretor espiritual” ou de um “pai espiritual“, segundo a mais feliz expressão usada na Igreja Ortodoxa? Apesar da bela frase de Bernanos (que remonta a santa Teresinha) de que “Tout est grace“, há uma parte que nos compete a nós fazer para que essa graça irrigue a nossa vida. É aquilo que antigamente chamávamos “ascese“. Hoje, a palavra está fora de moda e, mandada pela janela fora a necessidade de treinarmos no “ginásio espiritual“. Isto é, parece não ser importante ter objetivos, metas e desafios, disciplinas no reino da vida espiritual. Tudo é mole, piedoso, açucarado. Se olharmos para os santos, para os padres da Igreja, a sua vida estava repleta de disciplina, de ações e práticas a fim de se prepararem e disponibilizarem para a ação de Deus em nós e para a batalha.

Somos uma geração de gente “morna” e a sociedade com a sua panóplia de distrações e pequenos confortos lá se vai encarregando de nos adormecer e anestesiar.

A Arte e a Igreja

Li um artigo sobre as comemorações dos cinquenta anos da morte de Picasso. Aí se refere o carácter explosivo e torrencial da sua criatividade; os números absolutamente impressionantes das suas obras; a capacidade de renovação e inovação da arte que perseguiu.

Sempre que leio coisas sobre artistas, vem-me à cabeça a pergunta: onde está a Igreja, ou a arte cristã, nestes momentos? Porque consideram tantos artistas a religião como conservadora senão mesmo repressiva da criatividade, da explosão das forças inconscientes, da capacidade de arriscar novas linguagens? É claro que, olhando para a História da Igreja no século XIX e em parte do século XX é fácil perceber como a Igreja assumia em muitas das suas expressões um anelo restauracionista e um juízo severo e zangado diante da modernidade.

A minha pergunta não está feita para ser respondida pela análise histórica ou da sociologia das organizações. Parte, antes, da constatação que a Igreja é uma realidade teândrica, isto é simultaneamente humana e divina. Ela é habitada e guiada pelo Espírito de Cristo Ressuscitado. E esta verdade deveria ter como consequência a abertura ao novo, a alegria, a criatividade, a transformação do mundo do inconsciente em forças de amor e generosidade.

Deveria ser a Igreja a primeira a viver do grito: “Não tenhas medo” de arriscar, de inovar, de dialogar, de propor os ideais do “Bonum, Belum, Verum“. Em suma, se vivêssemos “do Espírito e pelo Espírito” que comunidade de seguidores de Jesus seríamos e que diálogo e criatividade traríamos ao mundo das artes?

A hidden life (II)

Como se combate o mal quando o mal está por todo o lado? Como se mantém a convicção daquilo que é reto e certo e justo? Como pesar na balança essa crença com uma família que precisa de um pai? “Que fazer quando tudo arde?” (Eugénio de Andrade), quando todos capitulam, quando os argumentos do racional são eles mesmos racionais? Sim, como pode o homem lutar contra as trevas do mundo?

Que farei do meu trabalho diário, cortar a lenha, ceifar nos campos, ordenhar as vacas, deitar-me com a minha mulher na erva olhando para cima, para o alto? Que farei desse amor laboriosamente tecendo mais amor?

E minha mãe velha e viúva que chora ao ver-me partir?

Que peso tem ainda a palavra redenção diante do Anticristo?

A Hidden Life (I)

Não é fácil ver este filme. De um lado a beleza espantosa da paisagem austríaca; a vida de uma família de agricultores passada no trabalho árduo mas sadio e feliz. Um pai que se recusa a prestar culto à grade Besta Apocalíptica, Adolf Hitler. Depois, e ainda vou nos começos, o ostracismo da pequena comunidade: a consciência, de um lado; a família e os filhos pequenos, do outro. Sempre presente, o dedo de Terrence Malik com a beleza terna da natureza, dos raios de sol, da vastidão das montanhas; os diálogos esparsos deixando tanto espaço para o subentendido.

Como teria sido para o escriba ter vivido em tempos tão sombrios, tempos onde era impossível estar em “cima do muro”, sem tomar partido? Como nos fizeram acreditar que o mundo é tão pacífico e cheio de gorduras como estes tempos que vivemos? Como despertar para a consciência que talvez o mundo seja um lugar perigoso, violento, onde se é chamado a tomar posição, a favor ou contra uma qualquer Besta Apocalíptica? Que faremos ao acumulado de gestos de amor, de paciente construção dos dias, da vontade de a tudo conferir um sentido e uma direção? “Comiam, bebiam, davam-se em casamento até que caiu sobre eles aquele dia” – eis a frase que me persegue como uma sombra.

Amma Sincletica disse:

“A jornada do deserto é de uma polegada de comprimento e muitas milhas de profundidade. O interior é a única direção da viagem.”

Que sentido ou que verdade tem esta palavra hoje? Ela foi proferida há muitos séculos atrás por uma “mãe do deserto“, um dos exemplos de mulheres místicas numa época em que eram os homens quem ia para o deserto procurar a sua salvação, chorando arrependidos os seus pecados.


Que “jornada do deserto” será esta? Refere-se a essa multidão de homens que abandonaram a vida cómoda e “burguesa” e rumaram ao deserto em busca da radicalidade inclemente do combate da sua indigência com o absoluto de Deus? Mas, se assim é, como pode essa jornada ter apenas uma polegada de comprimento? Que deserto será esse? A viagem que os padres e madres do deserto fizeram terá sido sobretudo geográfica: mudar o meu corpo da cidade para o ermo? Se assim for, essa pode ser viagem nenhuma: apenas um corpo que passa de um sítio para o outro.
Não. Esses homens fizeram duas viagens: uma em direção ao epicentro do calor, da desolação da paisagem nua, à inclemência da despossessão e ao abandono de toda a consolação enganadora. Essa viagem, chegado ao destino, entronca numa outra: a viagem ao interior de si mesmo: “No fundo do mar há brancos pavores” escreverá Sophia de Mello Breyner.


Esse heróis, esses combatentes do Absoluto abandonaram o apetrecho de bens materiais e espirituais, essa resma de tarecos que temos na vida e a quem prestamos culto, e que pouco mais fazem que ocultar a sede, a ferida, a morte, a alienação, a disfunção, as taras.


Por essa razão, chegados ao deserto, começava para eles a verdadeira viagem: descer ao fundo do poço, retirar lama e lixo, deixar que a água-que-murmura fizesse aparição como um novo batismo. Esse homens e essas mulheres tornaram-se uma tocha ardendo na noite do mundo. Travaram o combate de todos os combates, nus, em sangue “embalando a própria dor/ em frente às madrugadas do amor”, como disse ainda Sophia.


Eles estão a falar connosco neste dia. Melhor, trespassam-nos com o seu olhar penetrante, mudo, atento. Estão a intimar gente e mais gente a sair para o deserto, a empreender a viagem sem retorno, a combater até à exaustão o Rochedo. E, do norte, do sul, de este e do oeste, ouço um rumor quase impercetível: são os ossos ressequidos a ganharem nervuras, carne, alento. Dos quatro cantos da terra, ei-los, protegidos pela milícia celeste, a caminho do lugar de todos os combates. São o resto, aqueles que não tombaram vencidos pelo sono, os homens e mulheres da humanidade por vir.

“The scandal of holiness”

Às vezes pergunto-me qual deve ser a medida de aproximação relativamente à cultura na qual vivo, por contraposição à cultura cristã. É uma distinção um pouco falaciosa mas que não deixa de ter um fundo de verdade. Trata-se de dar uma medida e um peso ao binómio “cultura cristã e cultura profana”. Sempre me foi dito que, como cristão, é importante conhecer a cultura contemporânea, dialogar com ela, inclusivamente nela perceber as “sementes do verbo“, na expressão de S. Justino. Por essa razão, sou menos sensível a uma visão da fé que, diante da “ameaça” de propostas culturais contrárias aos valores do Evangelho, sente a necessidade de recuar, “reagrupar” as suas tropas, cerrar fileiras e preparar-se para o combate. 

Contudo, reconheço que ambas as posições poderão ter as suas desvantagens. No primeiro caso, uma certa ingenuidade na abordagem à cultura, seja porque se adota um postura que desvaloriza os aspetos anticristãos, seja porque à força de dialogar e de se aculturar, corre o risco de perder a sua identidade. Do outro lado, a postura de recuar, o medo do “contágio” do mundo e a necessidade de se defender, pode levar a uma visão demasiadamente distanciada e desconfiada da realidade.

Tudo somado, penso que é importante e decisivo, seja em que lugar do combate se esteja, estar munido e preparado, embebido no evangelho até ao osso. Não tenho qualquer ilusão que a fé exige um combate contra as forças de oposição que estão dentro de mim, em primeiro lugar, mas também fora de mim. E podem nem mesmo ser forças de oposição mas simplesmente forças de distração: o combate não visa apenas aquilo que se opõe ao que é importante mas também aquilo que, sendo inócuo, simplesmente me tira do centro, do lugar da vigilância.

Assim sendo, devo alimentar a minha inteligência, a minha vontade, a minha vida emocional com o “caldo do Evangelho“. Para isso devo embeber-me da Palavra de Deus. Por isso devo escutar a bela música do património cristão. E, também por isso, devo ler a grande literatura de inspiração cristã. 

Partilho  um livro que tenho estado a ler e que pode abrir portas interessantes. A proposta da autora é a de encarar a literatura espiritual, a boa literatura de inspiração cristã como um poderoso contributo para renovar a imaginação do leitor e instá-lo no caminho do que se chama habitualmente de “santidade cristã“. E como estamos necessitados de ler, nós os cristãos que desconhecemos o nosso rico património (quanto mais beber dele!) e nos atiramos cegamente a um qualquer “vento de doutrina”. Vale a pena ler este livro, que abre uma boa dezena de janelas para outros tantos campos de belas pastagens. 

Só assim, embebidos solidamente na nossa cultura e arte, poderemos empreender um debate sereno e seguro com a contemporaneidade, bebendo do nosso próprio poço e dando outros a beber. Caso contrário, seremos facilmente levados na enxurrada que tudo leva à sua frente.