A voz aos amigos (XXVI)

A figura do padre na literatura (5)

Monsenhor Blaise Meredith, inglês, funcionário do Vaticano, na Causa dos Santos, com vinte anos de sacerdócio, ainda não tendo chegado aos cinquenta de idade, sabe que morrerá em breve com um carcinoma no estômago. Começa assim o romance “O Advogado do Diabo” do australiano Morris West que foi publicado em 1959.
Aparentemente tudo acabaria de forma muito simples: “quando a agonia principiasse, suportá-la-ia com uma certa dignidade. A sua igreja protegê-lo-ia das necessidades e enterrá-lo-ia com honras quando chegasse a hora; e, se não houvesse ninguém para o chorar, também o facto poderia ser considerado como a compensação derradeira do seu celibato […]” O médico que lhe deu a terrível notícia comentou: “imagino que encontre nela [na fé] uma grande consolação para uma altura destas”. Ao que Meredith respondeu: “Espero encontrar, doutor. Mas sou padre há demasiado tempo para contar com isso.” No momento em que o encontro com Aquele que o chamara na juventude parecia iminente, debatia-se agora com a nostalgia e a dúvida: “a que se apegara ele que não tivesse rejeitado? Uma mulher? Um filho? Uma família? Não havia ninguém que lhe pertencesse. Posses? […] Carreira […] Algo do género…, mas não o suficiente – não o suficiente, de longe, para um homem que ansiava pela união perfeita que pregava. Talvez fosse o âmago da questão. Ele nunca tinha ansiado por nada. Tivera sempre o que tinha desejado e nada mais havia desejado além do que lhe fora propiciado […]. Atingira a satisfação num grau superior ao que era permitido à maioria dos homens – e, se nunca pedira felicidade, fora porque nunca fora infeliz. Até àquele momento […]”.
E eis que o Cardeal Eugenio Marotta, Prefeito da Congregação para os Ritos, o incumbe para ir até à pobre Calabria, a braços com as feridas do pós-guerra, para indagar sobre as virtudes dum pretenso santo popular, Giaccomo Nerone, morto pelos partisans comunistas. Ou seja, ser “advogado do diabo” diante de tal pretensão da parte da população local.
Será talvez a primeira vez na vida que aquele “funcionário de Deus” viverá e falará com pessoas simples e, quem sabe, seja essa uma forma de redenção e cura. Havia-se retirado para dentro de si durante demasiado tempo e havia-se tornado um estranho na família humana. No limite da vida percebera, talvez demasiado tarde, que um homem que não consegue amar o seu semelhante também não consegue amar a Deus. Na Calábria conheceu a amizade e a camaradagem. Entenderá, pela primeira vez, “a dignidade da dependência, o privilégio duma dependência partilhada”. Demasiado tempo passado em Roma fez com que esquecesse que “a Igreja é uma família de fiéis e não simplesmente uma burocracia de crentes”. Será diante duma periferia esquecida, entregue à sua sorte, em que “a fome não tem problemas de moral”, que Meredith conhecerá as suas derradeiras horas.
Será também uma oportunidade para abrir o leque daquilo que a hagiografia mais clássica considera as “virtudes” de um santo. Numa leitura mais leve, mesmo adequada para verão, vale a pena seguir a escrita de West, que foi, durante algum tempo, jornalista junto da Santa Sé. Uma boa leitura!

Humberto Martins

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