
Eis outra pérola lida algures: “Vivemos numa época de sobre estimulação”. E cá vai a formiguinha tentar perceber esta frase.
Quando falamos de ‘estímulos’, creio que se aplica a toda a informação (“notícia”, como dizia S. João da Cruz) que nos chega através dos cinco sentidos.
Por regra, precisamos que a nossa vista, tacto, ouvidos, paladar e olfato sejam exercitados e alimentem a nossa vida, dando cor e sabor aos nossos dias. Sabemos que as experiências de privação de um ou vários sentidos podem ter como consequência, no limite, a loucura ou mesmo a morte. Um prisioneiro colocado na “solitária” passará por um sofrimento atroz (ainda que sejam conhecidos testemunhos admiráveis de presos que resistiram e venceram). Por isso, é maravilhoso estarmos na posse dos nossos cinco sentidos e perceber e receber a vida na sua abundância inesgotável.
Em abono da verdade, existiram no passado (e ainda hoje) experiências de privação ou de disciplina no uso dos sentidos. Platão, ao distinguir o mundo das formas do mundo das aparências, lançou a âncora para um mundo que não se vê, desvalorizando ou relativizando este. Na sua esteira e sob a sua influência, alguma da espiritualidade e misticismo cristãos propuseram limites ao ver, ao ouvir, ao tocar, ao saborear. Esta atitude deu origem, nalguns casos, a uma desconfiança em relação a este mundo visto como perigoso, um escolho na caminhada do homem para Deus. Imagino que noutras tradições sapienciais e religiosas esta atitude de disciplina dos sentidos também esteja presente.
E “disciplina” é a palavra chave para tentar chegar à frase inicial destas linhas. O conceito de disciplina deve entrar no nosso léxico pessoal ou tudo deverá processar-se de forma espontânea? Se perguntarmos a um atleta de alta competição, de certeza que dirá que sem disciplina, isto é, sem orientar, dominar e fortalecer a sua vontade, teria sido impossível atingir os seus objetivos. Muitos escritores o dizem também: sem persistência e método dificilmente teriam conseguido desenvolver o seu talento. É verdade que também conhecemos artistas avessos ao método e simplesmente foram um furacão de criatividade e génio. Para o comum dos mortais, contudo, penso que é verdade que precisamos de disciplina se queremos atingir um determinado objetivo.
Isso significa, também, que reconhecemos que se ficarmos “left to our own devices”, normalmente a coisa não correrá bem – tornamo-nos presas do capricho ou do apetite do momento, o que é ótimo no curto prazo: aquele senhor (eu) adora comer, mas sabe que se comer sempre e apenas o que lhe apetece, a longo prazo o resultado não será bom. E aquela senhora encantadora, que adora participar em provas de maratona, não pode deixar que o “apetece-me” lhe condicione os treinos.
E assim, pelo menos na forma como interpreto a frase acima, também os nossos sentidos precisam de ser disciplinados para maximizar o prazer; para que o nosso mundo interior, coração, alma, o que queiramos chamar, não fique demasiadamente cheio, excitado com os milhares de impulsos sensoriais que todos os dias nos chegam pelas nossas cinco portas da alma. Eis algo que nunca ninguém nos disse nem tão pouco nisso fomos educados: usar de modo moderado e sábio os nossos sentidos, sendo criteriosos na forma como abrimos as portas ao que vem de fora e insistentemente pede para entrar. Não tenho dúvidas que a modo torrencial, ininterrupto e indiscriminado como recebemos a avalanche de informação, faz um tremendo mal àquilo que em nós pede calma, vagar, silêncio e lentidão. Somos um pouco como o rato que corre na roda dentro da gaiola sem sair do sítio.
A situação que hoje vivemos é efetivamente de “sobre estimulação”: temos muito, de tudo, a todo o tempo. (Não vale a pena pôr a tocar a “cassete” apocalíptica sobre as redes sociais, a TV, blá, blá, blá…).
Há uma sabedoria no uso moderado das coisas e em todas as áreas. Mesmos os filósofos epicuristas, conhecidos pela procura da maximização do prazer, sabiam que ela se conseguia não tanto pelo afogamento nas experiências sensoriais, mas pelo seu gozo sábio, moderado e criterioso.
Tenho pena que não haja esta educação do olhar, do ouvido do paladar, do tato ou do olfato. Acho que seríamos mais felizes e belos e luminosos. Em vez disso, padecemos da ‘sobreabundância de tudo’. Como lamentava Eugénio de Andrade: “Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos”.