Uma dor do tamanho do mundo

Enquanto esperava para transitar de uma atividade para outra, entrou, na sala, uma senhora para fazer a limpeza. Entre o meu sair da sala e a sua entrada, houve (há sempre, na realidade) aquele momento-relâmpago em que duas linhas se podem ou não cruzar. E esse cruzamento aconteceu. Eu tinha algum tempo até a atividade seguinte e estava também, interiormente, disponível.
Começámos a conversar, primeiro sobre o meu bocejo e os problemas com o sono. Daí em diante tornei-me uma pessoa de escuta. Tinha diante de mim uma vida marcada pelo sofrimento. E um sofrimento tão grande, que leva esta senhora a perguntar o que faz no mundo, se desde os dezoito anos a sua sina é sofrer. Diz-me, lágrimas nos olhos: “Já sofri muito”. Contou-me, e não reproduzo, o inferno percorrido a pés nus. Emudeço. Que faço, neste final de dia, com este drama que vem deitar por terra os pequeninos planos de cada dia, deste dia? Lembrei-me da frase do evangelho que lia hoje, na qual Jesus me diz para vigiar e estar atento porque ele vem no momento em que menos espero. Tendo, normalmente, a interpretar esta frase como a sua vinda no fim da minha vida, mas o encontro com esta Senhora leva-me por outro caminho. Nada mais pude fazer senão escutá-la e oferecer um arremedo de oração.
É por causa de momentos como este que tenho dificuldade em alinhar num certo modus vivendi alegre, despreocupado, superficial e ligeiro: essas formas de viver assentes na máscara, na aparência, no rosto ocultado, no coração atirado para trás do armário. Aqui vamos nós desfilando num ininterrupto Carnaval. Recordei-me, por isso, de um verso do nunca demais citado Cardeal Tolentino, no tempo em que era apenas poeta: “Falámos só de coisas inúteis/ e o mundo inteiro se escondia”.
Nas antípodas deste séquito está o rosto desta e de tantas outras pessoas cujas histórias estão feitas de desassossego, de dor. Que faço, quando me dizem, como tantas pessoas que sofrem ininterruptamente, “o que estou a fazer aqui, sofro desde os dezoito anos? Porque é que Deus me faz isto?”
Despedimo-nos e avanço para o último tempo de trabalho do dia. De repente, este e aquele assunto que fazem parte da agenda, desfazem-se insignificantes.
Não sei bem o que Jesus me quer dizer com “vigia, está preparado, está atento”. Desta vez, estava atento e presente e pude ser, ainda que fugazmente, um pequeno lugar de consolo e escuta. Fico feliz por isso. Já esta semana, por circunstância diversas, esta e aquela pessoa acabaram por “desaguar” o peso que carregam secretamente e que, havendo espaço, acaba por ver a luz do dia.
Chego a casa interiormente em tumulto: não é apenas a história daquela Senhora – é o que fazer do Grande Sofrimento do Mundo com a pergunta de sempre: de que lado da humanidade quero estar?

One thought on “Uma dor do tamanho do mundo

  1. Porque não abato com a inconsciência minha ou dos outros :
    “197 Felizes vivemos, na realidade, amistosos entre as pessoas hostis. Vivemos livres de ódio no meio de pessoas hostis ” Dhamapada.

    É por atuar corretamente não obstante os resultados ou interpretações que nos mantemos lúcidos e felizes com o que é possível ser feito retomando à paz e consciência assim que possível minuto a minuto.

    Atenção a demasiada leitura e escrita é por orar e atuar no terreno “palavra e exemplo”, sobretudo conjugando vontades, que nos satisfazemos e aplicamos os conhecimentos.

    s francisco de assis http://centrofranciscano.capuchinhossp.org.br/fontes-leitura?id=85&parent_id=4
    TEXTO ORIGINAL

    Admoestações – 7
    UT BONA OPERATIO SEQUATUR SCIENTIAM

    1 Dicit apostolus: Littera occidit, spiritus autem vivificat (2Cor 3,6).

    2 Illi sunt mortui a littera qui tantum sola verba cupiunt scire, ut sapientiores teneantur inter alios et possint acquirere magnas divitias dantes consanguineis et amicis.

    3 Et illi religiosi sunt mortui a littera, qui spiritum divinae litterae nolunt sequi, sed solum verba magis cupiunt scire et aliis interpretari.

    4 Et illi sunt vivificati a spiritu divinae litterae, qui omnem litteram, quem sciunt et cupiunt scire, non attribuunt corpori, sed verbo et exemplo reddunt ea altissimo Domino Deo cuius est omne bonum.

    TEXTO TRADUZIDO

    Admoestações – 7
    QUE A BOA OPERAÇÃO SIGA À CIÊNCIA

    1 Diz o apóstolo: A letra mata, mas o espírito vivifica (2Cor 3,6).

    2 São mortos pela letra os que só desejam conhecer as palavras, para serem tidos como mais sábios entre os outros e pode­rem adqui­rir grandes riquezas e dá-las aos parentes e amigos.

    3 E são mortos pela letra os religiosos que não querem seguir o espírito da letra di­vina mas só desejam saber mais as palavras e interpretá-las pa­ra os outros.

    4 E vivificados pelo espírito da letra divina são aqueles que não atribuem ao corpo toda letra que sabem e desejam saber mas por palavra e exemplo devolvem-nas ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo bem.

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