Platitudes XVII

– É bom ter amigos. Desses que ainda trazem bem incrustado no seu ADN moral a direção de uma vida virada para os outros, feita de amor e serviço. São peças de uma só costura, humanos e falíveis, mas sem refolhos na alma nem sombra no olhar. Sorriem e, neles, vemos a esperança do melhor que a humanidade pode dar.

– Ao ler “Contra a corrente“, de Roger Scruton, não posso deixar de pensar o quão doente está a nossa sociedade. Uma e outra vez, emerge em mim a consciência de que podemos estar submersos sem o saber ou respeitando um ar poluído sem disso dar conta. Scruton não faz compromissos com o ar do tempo.

– “Tudo importa, exceto o todo.” Disse Chesterton. E eu interpreto: ocupamos o nosso tempo na minúcia, no detalhe, no parcelar, no acessório. Não habitamos o todo: perceber o que nos move nesta vida, de onde vimos, para onde caminhamos. As grandes perguntas e dúvidas, os sinais avisadores de mudança de direção jazem poeirentos nas traseiras de uma qualquer repartição.

– Agitados por tantos e tão díspares “ventos de doutrina“, procuremos refúgio nas verdades eternas, ainda que elas mesmas sejam da ordem do horizonte-por-buscar mais que da captura e da domesticação. Empreendamos o caminho, sabendo que ao avançar, a solidão e a dúvida se nos juntarão como companhia.

Aftersun

Não é fácil explicar como este filme toca tão fundo a alma. Faltam-lhe os ingredientes de tantas produções atuais: ação, movimento, plot twists, sexo, violência.

E, no entanto, é um filme belo, ternurento, melancólico, a espaços triste. Qualquer um poderá pesquisar sobre o tema deste filme. Não o farei aqui.

Gostaria apenas de destacar a beleza e ternura na relação entre o pai e a filha, enquanto passam férias juntos num estância turística na Turquia, não especialmente apelativa. Não se explora a grandiosidade ou a sofisticação do meio envolvente. Não vemos uma relação pai/ filha glamourosa, açucarada, artificial. Não. No filme, há inúmeras pequenas cumplicidades, há uma lentidão na narrativa, uma ausência de adrenalina , as quais cedem passagem a mil e um detalhes que fazem destas férias banais férias especiais. Há a interpretação soberba de uma rapariga com onze anos. Há o amor, a cumplicidade deste par que parece tão desabrigado do sofrimento do mundo. Há a fotografia, os planos lentos, o detalhe do cabelo ao vento, de uma mão pousada noutra, de um diálogo pai e filha a bordo de uma dessas estruturas que flutuam na água.

No final, mas prenunciada sotto voce na narrativa, a dor da perda.

Não deixei de pensar em quantas histórias haverá por ese mundo fora de amor, de entrega, de ternura mas também de dor, do peso do sofrimento trazido do passado, da separação e perda. apetece proteger e abrigar estes dois seres humanos especiais no amor tanto quanto desprotegidos.

Nos começos da Quaresma

O tempo da quaresma é o tempo para a educação do desejo. É tempo de combate, de regresso, de regeneração.
A nossa alma é vagabunda, insensata e néscia. Viver é correr riscos: de dispersão, de troca de prioridades, de pulsão de adoração de ídolos no alto dos montes.

Volta, Israel, ao Senhor teu Deus.” A primeira leitura da liturgia de hoje do profeta Joel é muito expressiva: regressa ao Senhor com jejuns, com lágrimas, com lamentações, com um coração quebrado. Porquê? Porque nos afastámos da fonte e, assim, escolhemos o caminho do mal.

Agora, é tempo de voltar ao Senhor. Para isso, é pouca coisa tão só assumir uma atitude piedosa de arrependimento. É preciso um programa de regresso, como o adicto que se arrima a um programa de recuperação. Sem esse programa, sem passos reais, tangíveis, dolorosos, poderemos sossegar a consciência mas não entraremos na terra da promessa. Foi longo o caminho que nos foi afastando de Deus, precisamos agora de dez vezes mais fervor para regressar.

É pena que se tenha desdenhado das práticas espirituais da Quaresma: a intensificação da oração, do jejum e da esmola. Para muitos de nós, os esclarecidos do século XXI, serão práticas desacreditadas. Para os santos, os padres da Igreja e os místicos, que tinham a lúcida e dolorosa consciência do poder do mal, eram remédios vitais para encetar o caminho da regeneração.

Gostava de poder chegar às festas pascais preparado para receber essa vida nova, eu e toda essa espantosa miríade de batizados que pelo orbe terrestre procuram humildemente tornar Deus tangível.

“Contra a corrente”

É o título do livro que acabei de ler, da autoria de Roger Scruton, filósofo conservador inglês, falecido recentemente.

Li-o com prazer e quase sofreguidão. O livro é a compilação de um conjunto de crónicas que o autor foi escrevendo para diferentes meios de comunicação. Srcuton escreve muitíssimo bem. A prosa é inteligente, desassombrada, com o fino sentido de humor típico de um gentleman inglês.

Por vezes sinto-me perplexo com a rapidez e a profundidade das mudanças sociais, culturais, políticas e económicas que vão ocorrendo a grande velocidade. Discordando de algumas delas, dou comigo a pensar se o problema será meu, se não estarei a “desacompanhar” o ar do tempo. Roger Scruton dá uma preciosa ajuda, apresentando a sua visão fundamentada da realidade, impiedosa com aquilo que crê serem fraudes intelectuais, interesses instalados ou campanhas censórias por parte dos ideólogos do politicamente correto.

Mais: a sua visão do mundo não é primariamente ideológica ou política. Chama a atenção para coisas tão importantes como o lar, as relações de vizinhança, as práticas e ritos ancestrais que nos ligam a um espaço e um tempo.

E, a acompanhar todas as viagens e deambulações intelectuais, a omnipresença da necessidade vital de beleza, capaz de nos redimir e tornar mais suave a nossa passagem por este mundo tumultuoso, no qual não falta a maldade humana, a qual Scruton sentiu na pele no final da sua vida.

Platitudes XVI

– Será este o ato mais difícil da existência humana, o de colocar-se totalmente nas mãos de Deus, desistindo de controlar a própria vida e a dos outros? Uma das fontes de maior cansaço e perturbação é a incapacidade de tudo entregarmos,  com a confiança de uma criança, nas mãos daquele que tudo pode. Carregar o fardo de mim mesmo (“All my life I have borne the burden of myself“, escreveu D. H. Lawrence), dos outros à minha volta, é uma pesada “canga”, fonte de opressão não raras vezes difícil de suportar. “E um menino os poderá conduzir“, diz o profeta Isaías: a confiança desarmada em Deus é o grande tema da Bíblia.

– É preciso dar o grande salto em frente: da terra das nossas razões e da nossa visão do mundo para o “ameno bosque da Escritura”, essa terra da verdade e da paz Aí, depositar cegamente a confiança.

– Procuramos conforto e segurança nos pensamentos, mas existem momentos em que esse frágil recurso se torna totalmente incapaz de trazer consolo e esperança. Ficamos nus e gelados diante do abismo: como diz o salmo: “Quando se abalam os fundamentos, que pode ainda fazer o homem”?

– Há determinadas paixões que são constantes na história da literatura:

  1. Querer brilhar diante da sociedade;
  2. Tratar os outros com altivez.
  3. Dominar, ter poder.

– Cada momento traz um escolha, é um momento de julgamento, de crise, de tomada de posição.

– O escândalo da pedofilia irá silenciar e desacreditar ainda mais a voz da Igreja. Essa voz seria necessária para contrariar a vontade de aniquilação dos limites impostos por absolutos morais, hoje tão em voga por pessoas e organizações para quem não existem quaisquer linhas de demarcação.

Lectio Divina

“A leitura dos monges era uma leitura lenta, calma, ruminativa, saboreada, livre de qualquer interesse estranho à própria leitura… Afinal, sempre, a única coisa que procuravam era um contacto íntimo com a palavra de Deus, vivo e vivificante… os seus olhos viam o texto escrito, os seus lábios pronunciavam-no, os seus ouvidos ouviam-no. E a palavra de Deus permeava cada vez mais o monge leitor. A lectio divina não perseguia um objectivo científico ou literário, nem era considerada uma actividade puramente intelectual.

Não foi uma questão de especulação, à maneira dos filósofos, mas de aprendizagem para se viver melhor. Para tal, prestaram atenção, antes de mais, ao significado óbvio e literal da Escritura: tudo o que o texto sagrado ensina e refere foi o objecto da sua mais devota consideração. Mas não se contentaram com isto; investigaram com vivo interesse o significado espiritual, íntimo, magnífico e oculto que, de acordo com a convicção geral daqueles tempos, estava contido em cada página da Sagrada Escritura…”

Parágrafos extraídos de “El monacato primitivo” de García Colombás” – Ed. BAC

Domingo no mundo II

Leio que a Junta militar de Myanmar matou 3000 civis. Esta notícia aterra de improviso no meu domingo. Evito duas coisas: a culpa, a qual uma vez entrada nunca mais me permitirá a alegria; a indiferença: dizendo a mim mesmo que, se os meus estão bem isso é tudo o que interessa (na realidade não digo isso a mim mesmo mas ajo como tal). Que faço com esta seta apontada ao meu domingo? Em que lugar das bem-aventuranças e maldições narradas por S. Lucas no seu evangelho me situo?

O Irmão Roger de Taizé tem uma expressão iluminadora: lutar com um “coração reconciliado“: amar o mundo a partir (e, se calhar, por causa) da certeza do amor de Deus por mim.

Seguro, seguro é que não me é mais possível viver “etsi non daretur” – como se o atroz sofrimento não existisse ou pelo menos que me torne incapaz de me deslocar do carril das minhas rotinas.

Domingo no mundo

A antífona de entrada para a Eucaristia desta semana: “Eu confio, Senhor, na tua bondade.”

Que significa confiar em Deus? Ou, antes ainda, o que significa confiar? Seguramente não é uma atitude cerebral, um ato racional. Confiar implica mais do que isso.

Confiar também não é uma “fezada“, um desejo irracional.

Confiar em Deus é entregar-lhe a minha fé, fazer fé nele. É um ato de rendição. Aceito que ele sabe, pode, decide, governa, reina. Aceito pulverizar as quimeras com as quais creio ser eu mesmo o rei, o senhor, aquele que tudo sabe, essa mentira em que laboriosamente invisto desde tempos imemoriais.

Se entrego a Deus a minha confiança, começo por fazer um ato de rendição. E isso é tremendamente difícil porque “as cebolas do Egito” são infinitamente mais saborosas do que caminhar na noite do deserto, apenas com uma coluna de fogo por guia.

Deste modo, a confiança não é tanto “acreditar” em Deus mas “entregar a minha fé“. Não posso acreditar em Deus da mesma forma que acredito que esta cadeira está aqui ao meu lado. Saber que esta cadeira está aqui muda nada. Entregar a minha confiança a Deus muda tudo.

Dizer “Eu confio, Senhor, na tua bondade” significa deixar que essa bondade possa vivificar-me como a seiva à videira. Deixar que a bondade me desarme até à indignidade.

14.02.2023, terça-feira

Quando entrardes em alguma cidade e vos receberem, comei do que vos servirem, curai os enfermos que nela houver e dizei-lhes: ‘Está próximo o reino de Deus“.
Lucas 10, 9

Que posso retirar deste excerto do evangelho de hoje? Em primeiro lugar, o envio dos discípulos de Jesus tem como ordem a cura dos enfermos. Quem eram esses enfermos? Quem são os enfermos hoje? Como posso eu ou qualquer seguidor de Jesus “curar os enfermos“, sendo eu mesmo enfermo? Será um sentido literal? Poderemos alargar esse sentido ajudando a curar as doenças interiores das pessoas? E estarão elas doentes? Creio que sim: a culpa, o medo do futuro, a desconfiança em relação às suas capacidades; uma rutura afetiva; o acompanhamento em sofrimento de alguém próximo vítima de doença incapacitante; essa pessoa que, com a vida suspensa, não sabe por onde avançar; o aluno ansioso com o seu desempenho escolar; aquela pessoa que simplesmente não tem com quem falar. Aqueloutra que se tem como desinteressante, sem beleza interior ou exterior.

E o que tem o cristão para oferecer? A partir de que lugar, a partir de que clarividência, a partir de que luta travada proclama ele que o Reino de Deus está próximo? Entenderá ele o que é esse Reino, a “locomotiva vertical” que se despenha sobre nós trazendo o lume do céu?

Receio a vida morna, a minha vida morna. Levanto os olhos ao céu, peço o orvalho da sua misericórdia, a luz da primeira manhã, a confiança da primeira infância para acolher a possibilidade do impossível.

04.02.2023

Leio um artigo sobre o pintor e ceramista Manuel Cargaleiro. Na viagem  pelas suas memórias, recorda a amizade com o poeta Herberto Hélder que o visita na sua quinta de família. Achei interessante a descrição sobre HH: uma pessoa solitária, que gostava, por bons bocados, de passear só entre hortas e pomares.

Penso nas almas que procuram a solidão e o recolhimento. Louvo-as em silêncio, agradeço-lhes  o inconformismo, a procura honesta de um outro andamento vivencial. Em mim, algo renasce ou, pelo menos, retoma um mais de vigor. Saúdo, então, os habitantes desses outro mundos.