Enxurrada

Um breve apontamento deste dia.


O pobre distraído sobe as escadas, mergulhado nos seus pensamentos, preso na estreita dimensão dos problemas e das tarefas do dia, tão chão quanto o chão que pisa. Levanta o olhar, encontra uma alma em sangue: “o meu pai morreu ontem”, disse-lhe ele.


De repente, a frágil construção dos dias, essa tentativa tão pueril quanto ilusória de se agarrar a dois réis de segurança – tudo tomba com estrondo. Qualquer coisa do mistério mais profundo e inexplorado da vida é atirado contra o néscio, como um forte tronco é arremessado contra a porta do castelo.


Eis a vida verdadeira, isto é, eis, em trinta segundos, a viagem vertiginosa rumo ao que de mais importante e decisivo a vida tem: o amor, a vida, a morte. Como se, de repente, todos os sons do mundo se calassem, ficando ali, a sentir o latejar de uma dor que tempos e tempos apenas ajudarão a sarar.


Por momentos apenas, tangencialmente, estas duas vidas encontraram-se nesse ponto entre o tudo e o nada. Depois de um abraço, cada qual vai ao seu caminho: um, imergindo sem freio no abismo do sofrimento; o outro, emergindo para a rotina, o acessório, a margem, as mãos vazias.


O insensato assomou à janela: implorou a um qualquer deus o dom da sabedoria, não fosse ele um dia morrer sem ter de todo vivido.

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