“Não não mereço esta hora”

Não não mereço esta hora
Eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
Que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
Tão antigo como os meus olhos
Talvez mesmo mais antigo que os meus olhos.

Ruy Belo

Um filósofo disse em tempos “chegamos sempre atrasados ao rosto do outro“, frase que daria para nos abeirarmos do seu significado sem chegarmos a ver o fundo, intuindo, apenas, que esse outro que está diante de mim é um mistério, inacessível a si e a mim, nunca um objeto de predação.

Lembrei-me deste poema breve de Ruy Belo hoje mesmo a propósito deste dia, um de tantos dias, de todos os dias onde chego incansavelmente de manhã e de quem me despeço à noite. Não estou à altura deles, de alguns, de um sequer. Cada um deles é demasiadamente precioso, extraordinário, especial e rico para que o possa apreender ou compreender ou apreciar. Chego sempre atrasado ao dia que estou a viver e, por vezes, nem chego a chegar. Não gostaria de um dia, já no leito de morte, ter de me confessar a essa enfermeira de serviço, murmurando que me arrependo (enquanto debito uma ou outra trivialidade) de não ter visto, não me ter apercebido, não ter dado valor, ter estado por demais alheado e ausente. Talvez nesse momento descubra, amargamente, que não estive à altura do dom que manou inesgotavelmente, mesmo (oh quão tarde o soube) nas horas mais negras da minha existência.

Chego sempre atrasado porque não vejo. Não vejo o oiro escondido sob a areia. Não vejo a dor, a noite, o sofrimento da multidão que, de forma muda, sempre me foi dizendo o quão afortunado foram os meus dias, tantos dos meus dias, todos os meus dias.


Não não mereço esta hora“. Não a mereço pela cegueira pertinaz, pela impenitência como modo de vida, pela cerviz dura e teimosa em não querer ver, ainda que me tenha estimado um qualquer arauto da luz e, sobretudo, pelo orgulho mais longevo que a totalidade dos meus dias.

Quem sabe? Talvez o anjo de todos os começos possa ainda redimir o irremissível e permitir uma nesga de esperança.

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