Amma Sincletica disse:

“A jornada do deserto é de uma polegada de comprimento e muitas milhas de profundidade. O interior é a única direção da viagem.”

Que sentido ou que verdade tem esta palavra hoje? Ela foi proferida há muitos séculos atrás por uma “mãe do deserto“, um dos exemplos de mulheres místicas numa época em que eram os homens quem ia para o deserto procurar a sua salvação, chorando arrependidos os seus pecados.


Que “jornada do deserto” será esta? Refere-se a essa multidão de homens que abandonaram a vida cómoda e “burguesa” e rumaram ao deserto em busca da radicalidade inclemente do combate da sua indigência com o absoluto de Deus? Mas, se assim é, como pode essa jornada ter apenas uma polegada de comprimento? Que deserto será esse? A viagem que os padres e madres do deserto fizeram terá sido sobretudo geográfica: mudar o meu corpo da cidade para o ermo? Se assim for, essa pode ser viagem nenhuma: apenas um corpo que passa de um sítio para o outro.
Não. Esses homens fizeram duas viagens: uma em direção ao epicentro do calor, da desolação da paisagem nua, à inclemência da despossessão e ao abandono de toda a consolação enganadora. Essa viagem, chegado ao destino, entronca numa outra: a viagem ao interior de si mesmo: “No fundo do mar há brancos pavores” escreverá Sophia de Mello Breyner.


Esse heróis, esses combatentes do Absoluto abandonaram o apetrecho de bens materiais e espirituais, essa resma de tarecos que temos na vida e a quem prestamos culto, e que pouco mais fazem que ocultar a sede, a ferida, a morte, a alienação, a disfunção, as taras.


Por essa razão, chegados ao deserto, começava para eles a verdadeira viagem: descer ao fundo do poço, retirar lama e lixo, deixar que a água-que-murmura fizesse aparição como um novo batismo. Esse homens e essas mulheres tornaram-se uma tocha ardendo na noite do mundo. Travaram o combate de todos os combates, nus, em sangue “embalando a própria dor/ em frente às madrugadas do amor”, como disse ainda Sophia.


Eles estão a falar connosco neste dia. Melhor, trespassam-nos com o seu olhar penetrante, mudo, atento. Estão a intimar gente e mais gente a sair para o deserto, a empreender a viagem sem retorno, a combater até à exaustão o Rochedo. E, do norte, do sul, de este e do oeste, ouço um rumor quase impercetível: são os ossos ressequidos a ganharem nervuras, carne, alento. Dos quatro cantos da terra, ei-los, protegidos pela milícia celeste, a caminho do lugar de todos os combates. São o resto, aqueles que não tombaram vencidos pelo sono, os homens e mulheres da humanidade por vir.

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