
Bendito seja o Senhor, que enviou o seu anjo e libertou os seus servos, que n’Ele confiaram.
Dn 3, 9
Quem fala nesta perícope? É o profeta Daniel. Qual foi o anjo que Deus enviou? De onde e para onde o enviou? Não temos o seu nome. Deus envia um anjo como proteção para um grupo de pessoas. Essas pessoas são os servos de Deus. A razão pela qual o anjo foi enviado foi a de dar a liberdade aos servos, a esse grupo de pessoas. Se são servos de Deus, têm com ele uma relação, alguma espécie de vínculo. Deus envia um anjo libertador porque sabe que os seus servos estão de alguma forma presos. O Senhor dá, através do anjo, a liberdade. O povo confiou em Deus.
Que faz esta palavra, nesta sexta-feira dia dez de junho, dia do anjo da guarda? Aliás, o que faz a Palavra que Deus envia cada dia, repito, que faz essa palavra no meu dia? Eu também tenho palavras e sou habitado pelas palavras convencionadas e razoáveis e previsíveis e repetitivas que a minha mente, os grupos, a sociedade, ministram. Esse conjunto de palavras forma uma nebulosa, diria, forma um ecossistema, a medida, o tom e a métrica à minha forma de ver o mundo e nele habitar. É com essas palavras que vivemos, entendemos o mundo, estamos em sociedade.
E, de repente, a cada dia caem palavras incandescentes, provocatórias, revolucionárias, indigestíveis. Palavras que abalam os fundamentos da minha forma de entender o mundo, da forma como o coletivo de cidadãos organiza a sua escala de valores. Ah, que aborrecimento… que estão essas palavras descidas do céu a fazer? Elas interferem com os meus planos, com a lógica estabelecida. Elas são fogo, são o vendaval que tudo varre, tudo põe a nu…
Olho para essas palavras neste dia dez de junho: fala da libertação do povo, mas já somos todos livres! Diz que Deus manda um anjo à minha frente (mas quem?) e que tem um lugar preparado para mim (mas qual?). Diz que tenho de ouvir a voz desse mensageiro (mas onde está?) e que esse mesmo mensageiro segue à minha frente…
Que fazem essas palavras, essas injunções, neste dia pachorrento em que descansei, li, vi uma série, andei despreocupado pela casa?
Que inoportunas são essas palavras vindas-de-cima!
O Anjo que em meu redor passa e me espia E cruel me combate, nesse dia Veio sentar-se ao lado do meu leito E embalou-me, cantando, no seu peito. Ele que indiferente olha e me escuta Sofrer, ou que feroz comigo luta, Ele que me entregara à solidão, Poisava a sua mão na minha mão. E foi como se tudo se extinguisse, Como se o mundo inteiro se calasse, E o meu ser liberto enfim florisse, E um perfeito silêncio me embalasse.
Sophia de Mello Breyner