Há uma surdez “ontológica” e absoluta que nenhum esforço pode curar. A árvore está demasiadamente inquinada para medrar. A cura vem sempre do alto. Surdez e cegueira, duas incapacidades viscerais. Os pensamentos confinam e apoucam. Oh, a vida morna, a arrogância de pensar que vejo e ouço, a impenitência e a ilusão de ser de tudo o centro. “Ando errante, como ovelha desgarrada”, diz o salmo. Eis a condição do homem.
A impotência diante da omnipotência dos ditames do ego. Uma inflamação grave, permanente, totalitária e, ainda assim, suficientemente astuta para fazer crer que de nada padeço: um pequenito inferno ambulante, os meus dias.
Sei que sou empurrado a pouco e pouco para fora da cidade, da praça, das vozes, das verdades do tempo.
É quase certo que magoei pessoas ao longo do caminho, uma ou outra por tê-las simplesmente abandonado. Talvez a vida seja feita bem mais de encontrões que de encontros. Somos uns desajeitados e toscos na arte de comunicar o amor e o afeto. Quem sabe apenas os anjos tenham essa transparência. Há demasiada entropia entre o coração e o mundo fora. O ser humano tem um coração complexo, profundo, quase totalmente inacessível a si mesmo. Dele brotam os comportamentos mais inesperados, por ele tomamos decisões estranhas, por ele terminam amizades sólidas. Talvez a parcimónia e uma extrema prudência deveriam reger as relações entre as pessoas, como um pórtico para todas as relações.
Olharei um dia para trás e lamentarei não ter vivido? Eis a pergunta que escalda.
Há uma doença coletiva, a inflamação do ego. E ninguém tem a cura.
Lido algures: “ancora o teu barquito no navio dos teus pais”.
O mundo odeia pessoas felizes e livres.
Os outros estão ainda tremendamente dentro de mim. Habitam os meus pensamentos e motivações mais secretas.
Séneca insiste muito no trabalho interior: trabalhar sobre nós mesmos a fim de nos tornarmos pessoas melhores. Talvez haja pessoas que nem sequer têm consciência de que podem e deem trabalhar sobre si mesmas. Séneca é muito arguto em relação aos movimentos mais subtis da nossa alma. Percebo que a filosofia estóica tenha influenciado o cristianismo.
Estamos sempre aquém do dia que vivemos.
Às vezes assusto-me com a perspetiva de que a imprevisibilidade, o caos, a surpresa, se abatam inesperadamente sobre mim. Afinal de contas nada me protege da realidade. Nada, a não ser efabulações mentais.
Num livro, leio que tal personagem é de “envergadura” – que que significa essa palavra? Talvez alguém que deixa nos outros uma marca, uma impressão. Distinguir-se-á pela sua presença, quem sabe pela sua calma, maneiras, pela resistência em condescender com a vulgaridade, pela fidelidade a códigos de pensamento e de procedimento. Essas escasseiam e abundam pessoas vulgares e superficiais, estas bem alienadas da sua própria casa.