Platitudes – VIII

1. Li que, na antiga tradição monástica oriental, o “noviço”, isto é aquele que estava num período de discernimento e prova relativamente à sua vocação, era chamado à presença do seu Padre Mestre (o formador), no final de cada dia.
Era o momento em que o noviço falava sobre as suas vivências interiores e exteriores, verbalizando o que sentia, dando forma e tom a todo um mundo de pensamentos, emoções, sentimentos e ações que tinham percorrido o seu dia. A esta terapêutica chamavam “tirar o veneno do pescoço da cobra”.

Penso que a necessidade permanece atual. Deveríamos, ao final de cada dia, ter um tempo e um interlocutor a quem pudéssemos confiar tudo o que fomos vivendo. Vamos sempre acumulando um peso que precisa de ser alijado. Há muitas forma: uma série, uma música, o cuidado do jardim, uma corrida. Penso, contudo, que nada bate a palavra que dizemos e que é acolhida, compreendida e guardada pela alma gémea. Quando somos compreendidos, que benção… Alguma coisa é sanada, a carga repartida, o coração recomeça a viver.

2. O Cristianismo é uma religião da paz. Acreditamos que Jesus deu a sua vida para que os inimigos se tornassem amigos; para que, de todos os povos da terra se formasse uma só família humana. Não creio que haja dúvidas em relação a isso.
A um nível mais próximo e pessoal, quando duas pessoas estão desavindas, rapidamente se diz que devem dialogar e tentar uma aproximação. Também isto é verdade. De todos os modos, a pergunta que faço é: a que preço? Onde está a linha divisória entre a procura da paz e a “paz podre”? O que separa a procura da unidade do unanimismo?

Jesus foi seguramente aquele que mais procurou a paz, quem se atreveria a negá-lo? Mas a paz e a união que ele procurou não podem ser desligadas da procura da justiça e da verdade. A sua forma de ser e de estar, levou a sua família a dizer que ele “estava fora de si”. Que deveria ele ter feito nesse momento? Deveria ter cedido, a bem da paz e da harmonia familiar e tomado uma postura mais “branda” e cordata a fim de “não levantar ondas”? Porque quis ele provocar o poder religioso do seu tempo? Não teria sido mais fácil uma postura mais dócil e “politicamente correcta”, onde pudesse ter lavrado algumas críticas mas sempre a partir de “dentro do sistema”? Porque disse ele que tinha vindo trazer a espada em vez da paz? É apenas uma metáfora?

Creio que a rapidez com que a prática cristã procura silenciar as dissensões que surgem tem de ser devidamente escrutinada. Confundimos demasiadas vezes a construção da paz com a conformidade face ao “status quo”. Se duas pessoas têm duas formas de entender um problema concreto ou a própria vida que são diferentes e irreconciliáveis, que devem fazer? Nas cartas de Paulo ou no livro dos Atos dos Apóstolos (não me lembro) vemos que Paulo e um seu colaborador (Silas?) seguem cada um para seu lado, uma vez que têm visões diferentes sobre o minstério e não chegam a um entendimento.

O esforço deve ser sempre feito no sentido da concórdia e da unidade. Contudo, essa unidade plena e total é escatológica e só se verificará no final dos tempos. A união e a paz têm de ter por base a verdade e a justiça e não a paz podre para que tudo fique na mesma.

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