A voz aos amigos (XXXVIII)

A figura do padre na literatura (XII)

Em 1953 surge o romance “Manhã submersa” de Vergílio Ferreira. Curioso que o romance estava a ter pouca receção até que se chega a Abril de 74 e, com ele, o fim da ditadura. Não há isso de “acasos” na história…

António dos Santos, o Borralho, foi obrigado, pela miséria e pela orfandade, a receber o apoio financeiro duma Senhora rica – numa forma manipuladora de fazer as contas com a divindade – para entrar no antigo seminário menor do Fundão – o Casarão. O texto (a tessitura) é a narração do doloroso processo de desvinculação de um futuro forçado (a ação desenrolar-se-ia pelos anos 30). A cena final representa essa libertação redentora: António torna-se inapto para o ministério sacerdotal.

De certa forma é um romance autobiográfico em que se tenta sobrepor o narrador, com o seu mundo individual (omnipresente e omnisciente), ao “Sistema Total” e autorreplicativo (Michel Foucault) que representa o Seminário e este, por sinédoque, o Estado Novo. É uma luta desigual em que parece que o sistema sempre vence.

Assim, as figuras dos padres aparecem como o descarte – vítimas e novamente protagonistas replicadores – dum sistema social altamente castrador e, no qual, quase ninguém se salva.

Um órfão, a quem lhe é proposta uma nova figura paternal (o reitor), precisa de “matar” essa figura. Curioso que, quando Lauro António nos anos 80 adaptou o romance para filme, Vergílio Ferreira interpretará a personagem do reitor do seminário, figura dominante desse universo fechado com o qual o autor parece, dessa forma, querer acertar contas.

Padres funestos, violentos e temíveis: o professor de latim “de olhares curtos como bicadas”, promotor da competição inter pares e o clima generalizado de suspeita; o professor de português de maus fígados. “Rememoro o humor frisado e agressivo do padre Lino, a vasta sombra do padre Tomás nos corredores, a feminilidade nervosa do padre Fialho, o grosso Raposo, o padre Martins de pau, o melancólico Pita, o Silveira, o Canelas, o Reitor”.

O reitor não tem nome. É intencional, porque é uma figura-tipo, imago da figura temível do pai edipiano.

Só o padre Alves se salva. Com a sua “fronte de gigante” era um “bom varão que me tratava por filho”. Mostrava-se “verdadeiro e humano” e envolvia-o uma lenda de “coragem e de glória”. Iluminava o seu rosto um “olhar silencioso e compassivo”. Lança-se a hipótese que se tratasse do padre Joaquim Alves Brás, que fora diretor espiritual e fundador da Obra de santa Zita. O reconhecimento geral das suas virtudes faz com que decorra presentemente o processo da sua beatificação.

“Manhã submersa” pode ser o resultado extremo dum sistema social fechado, autorreferencial. Um sistema só se torna saudável quando há membranas que permitem a permuta e a transferência com outros sistemas. De contrário o sistema fica doente e, com ele, as pessoas que o retroalimentam. O clericalismo precisa dum sistema maior – nacional – em que o sistema religioso copia o autoritarismo civil com quem desenvolve um sistema simbiótico. O Papa Francisco não se cansa de o combater.

Humberto Martins

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