A voz aos amigos (XXXV)

O padre na literatura (X)

Carlo Coccioli: “Tra cielo e terra”


Pecado original, redenção, santidade, demónio. Quem se atreveria hoje a escrever um romance sobre estes temas? Tentou-o Carlo Coccioli neste romance de 1950 ousando falar de temas intemporais, e que todas as épocas e lugares enchem-lhe de carne. Aqui não existe somente um padre com “odor” de santidade, enviado para ser pároco numa pequena aldeia montanhosa (Chiarotorre) para que entendesse que, para carregar a cruz, não seria necessário ir até aos confins da terra. Ele trata da vida de todos nós, com as suas lacerações abertas.
Don Ardito é um padre atormentado ao tentar encontrar o caminho para servir a Deus – o céu – progressivamente consciente que terá de percorrê-lo sobre uma terra povoada de indivíduos e leis bem terrenas, numa terra “sem” Deus.
Até que ponto uma pessoa é dona de si ou é de uma outra, inominável? Que direito tem Deus de intervir na existência do homem, se o drama dum sofrimento desconhecido persiste? O mal é apenas maldade humana ou é também domínio de Satanás? Que resposta damos perante a nossa própria insuficiência? É por esta razão que toda a humanidade entra no fio narrativo deste autor: nobres e camponeses, sacerdotes e combatentes (estamos entre 1927 e 1943), pecadores e videntes. Todos eles indissociavelmente ligados a Don Ardito Piccardi, com quem entraram em contacto: o marxista que entra na Trapa, o homossexual atormentado com a sua história, etc.
Don Ardito é como Carlo Coccioli. Na sua escrita febril, com os seus temas exagerados, sem comparação possível a Mauriac ou Bernanos, a verdade é que Coccioli era – e é – apenas ele mesmo, ao “queimar-se” na busca de um sentido para o humano. Don Ardito, pastor de almas, arauto contra Satanás; também ele se deixa possuir quando cede à lógica dos salões à la page (sic!); mas salvo pelo desejo de regressar ao reconhecimento de Deus em cada pessoa, da única forma possível: por amor e sem renunciar a nada do que está no ser humano até o trazer à luz. Começa Don Ardito por recusar em se adaptar a uma via humana e terrena e vemo-lo a amadurecer diante dos nossos olhos, ao renunciar lentamente a esse princípio (e é isso que o torna grande: a renúncia até da sua “riqueza” para nos enriquecer com a sua “pobreza”).
Assim toma consciência de não poder agir pelo Outro, de não poder ser a mão de Deus na terra, entre os homens, sem fazer parte da humanidade, sem estar entre os homens: “se esses – os homens – se movem, algo em mim se move. Talvez o mesmo acontece com eles se eu me movo. Estamos aqui edificados uns para os outros, uma irreparável relação”.
Enfim, o nosso padre chegará àquele que parece ser o caminho mais terreno e divino, ao mesmo tempo e, nas suas derradeiras horas, dirá: “Muitas, muitas coisas me escapam. Por outro lado, não procuro atingi-las.” “Posso perguntar porquê?” “Não sei se te é mais fácil dar-te conta até que ponto é inútil compreender. Compreender no sentido de conhecer…” “E então o que é que é realmente útil?” “Descobri que é útil amar. Mas foi-me pedido tanto até chegar a esta descoberta.”
Arderá nas tuas mãos como fogo este romance e o confronto com um homem que tantos, pelo mundo fora, acreditaram existir numa aldeia perdida nas montanhas a quem escreveram cartas porque lhes tinha lido o coração como um livro aberto!

O livro está traduzido em português: Carlo Coccioli, O céu e a terra (Editora Ulisseia, 1973)

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