A voz aos amigos (XXXIII)

O Padre na Literatura (IX)

De Bruce Marshall (1899-1987), um escritor escocês muito profícuo, convertido ao catolicismo, este “The World, the Flesh and Father Smith” de 1944, nem é sequer um dos seus romances mais representativos. Pressente-se na sua escrita que é um convertido que escreve, sem deixar de ser suficientemente irónico e satírico ao jeito de Chesterton.

Este romance possivelmente foi escrito ao longo da II Guerra Mundial e a cronologia do mesmo estende-se por trinta anos até à guerra, com o protagonista – o Pe. Smith – a abarcar duas gerações de paroquianos. Ele é um padre católico muito humano, pároco dum bairro pobre urbano. Este livro é também uma reflexão sobre a guerra e a ingenuidade ideológica dos nacionalismos exacerbados que conduziram a Europa a duas guerras em tão curto espaço de tempo. Elvira, uma das jovens que ele tinha batizado, agora atriz de cinema, dirá ao Pe. Smith, nas vésperas da II Guerra Mundial: “diga-me, padre, há algo que não vai bem neste país, não é verdade?” O próprio Marshall, aliás como o Pe. Smith, estiveram na Frente. Marshall sairia daí incapacitado.

Smith, este pastor com “cheiro das ovelhas”, lida com as fraquezas humanas, as inconsistências da fé e os limites da hierarquia eclesiástica com um humor contagioso e despretensioso. A sua vida decorre entre a alegria e a tragédia, o desânimo e a esperança, o drama e a rotina, as misérias humanas e a graça divina. Ao longo deste longo percurso, constatamos o passar dos anos pelo Pe. Smith. Vemos também as crianças que batizara tornarem-se adultas. É um relato simpático da presença da figura do sacerdote nas mais diversas teias sociais; a presença dum homem que conhece como poucos as profundidades da alma humana. E é também um relato da fraternidade sacerdotal.

Os capítulos são breves, os caracteres são claramente delineados, e a narrativa é temperada com observações astuciosas e sagacidade frequente. A escrita é acessível, envolvente, bem ritmada e por vezes estranhamente poética.

O catolicismo próximo das classes pobres, onde os seus costumes são vistos com desconfiança pelas outras confissões cristãs; a tensão entre a modernidade e um catolicismo conservador (veja-se a deliciosa cena da ida de três padres, pela primeira vez, a um cinema mudo), no contraste entre a “verdade” da Igreja e a solicitação da vida vivida com prazer (veja-se o divertido diálogo entre o Pe. Smith e uma romancista feminista) vão-nos passando pelas mãos de forma leve e divertida.

Com o passar do tempo, filmes chegam e partem, no cinema do outro lado da rua, bem como escritores, livros, anúncios publicitários e as evoluções técnicas “que nem sequer dão tempo aos homens de se tornarem sábios”, pensa o Pe. Smith.

Ao visitar Elvira Sarno, a jovem atriz, no hotel em que se hospedara, “acostumado a contemplar o pecado e a trivialidade só a partir do púlpito e do confessionário, o cónego [Smith] ficou aterrorizado de os encontrar ao seu mesmo nível, e, para não se ver obrigado a inspecioná-lo demasiado, dirigiu-se à vitrine dos livros…

Entretanto o jovem Scott, também batizado por Smith, tornou-se padre e um grande pregador, com pensamento arejado, adotando uma linguagem acessível a todos, pondo em prática as recomendação do bispo diocesano que aconselhava, no seu leito de morte, para que os sacerdotes “escrevessem os seus sermões palavra por palavra” e que era “muito mais eficaz dizer ‘Igreja’ em vez de ‘a nossa Santa Madre Igreja’, ‘misericórdia’ em vez de ‘infinita misericórdia’, porque os adjetivos se podem petrificar tanto como os substantivos”! Não são só devaneios de um moribundo!

Uma boa leitura!

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