
Mão amiga fez-me notícia do livro: “Manhãs milagrosas”. Quem me conhece, sabe que sou madrugador, não por opção, mas porque o meu ‘pavio do sono’ é curto. A pouco e pouco fui aprendendo que ficar na cama acordado não me trazia grande benefício. Introduzi a prática do exercício físico e, mais recentemente, a meditação. Hoje, é para mim impensável que o dia possa começar apressado e se reduza a sair da cama, fazer a higiene, comer à pressa e sair para as tarefas do dia. Os rituais são-me muito caros: com eles entro mais confiante e alegre em cada dia.
Nesse sentido, o livro que indiquei acima, poderia ser, para mim, uma boa ajuda para dar mais forma e consistência aos meus rituais da manhã. As práticas que são propostas são interessantes e são um bom contributo para o “aprimoramento pessoal”, expressão que achei interessante: fazer exercício físico, ler, escrever, repetir afirmações positivas, visualizar, meditar – tudo práticas positivas e que tornam o início do dia, se não milagroso, pelo menos mais saboroso. Paralelamente, existe a possibilidade de o praticante se juntar à comunidade mundial de praticantes da manhã milagrosa: é engraçado ver tanta gente, de pontos diferentes do mundo, introduzindo práticas que os ajudam a melhorar como seres humanos.
Eu sei que a indústria da autoajuda movimenta muitos milhões e é, portanto, um negócio – e onde há um negócio há práticas para visar o lucro e fomentar o consumo.
Dito isto, tenho alguns pensamentos:
a) Se não forem estes gurus da autoajuda, que outras instâncias existem hoje que ajudem as pessoas a lutarem por serem melhores, por fixarem objetivos e lutarem por eles? A Filosofia e a Religião, de alguma forma e, sem os excessos de “o céu é o limite”, ofereciam esse trabalho de auto-superação, de conversão, de seguir um caminho de um “menos” para um “mais”, o que quer que estes sejam. No caso do cristianismo, existe a noção de “combate” – o trabalho que fazemos sobre nós próprios , precedidos e ajudados pela graça de Deus – que confere sentido, intensidade e direção aos nossos dias. Pergunto-me se hoje não estamos a perder isso de vista, tornando-nos “couch potatoes”, isto é adormecidos-no-sofá… Não virá a autoajuda suprir essa lacuna?
b) Considero falaciosa a ideia vendida de que podemos tornar-nos o que quisermos, se quisermos e quando quisermos: basta ter vontade e um plano. Considero essa antropologia perigosa. Como cristão, percebo o ser humano como dividido por forças contrárias: uma que nos puxa para o bem, outra para o mal; queremos uma coisa e fazemos outra; somos fundamentalmente “broken people”, como canta a banda 21 Pilots. Neste sentido, a consideração do ser humano como detentor de uma plasticidade absoluta é para mim uma heresia. A verdade, no entanto, é que muitas pessoas sentem que algo ou alguma coisa as ajuda a superarem-se a si mesmas: acordar mais cedo, emagrecer, praticar desporto, desenvolver um novo hobby, lutar por melhorar no seu trabalho. Muitas pessoas estão a agir, a mudar aspetos das suas vidas porque sabem que algumas coisas não estão bem e querem simplesmente ser melhores. É como se houvesse uma laicização do conceito de metanoia (conversão): abandonar uma direção e seguir por uma outra nova. Penso no que acontece na nossa prática sacramental, pastoral e espiritual: caricaturamos a Quaresma com práticas inertes, desdenhamos do coaching espiritual (o que antigamente chamávamos “direção espiritual”), enfim reduzimos a fé a uma gelatina. Entretanto, por esse mundo fora, muitas pessoas continuam à procura de sentido, direção, superação e são os gurus da AA que lideram o caminho. Por isso, tenho “mixed feelings”: considero que a ideia de oferecer um mapa de superação pessoal, estratégias para lutar e vencer é fundamentalmente uma boa ideia; no entanto, penso que esta ideia prometeica de chegar ao sol é perigosa.
d) O processo de ajudar alguém a ser melhor, o papel do pedagogo, é pessoal e delicado. A etimologia da ideia do “coach” é interessante porque é alguém que se senta ao teu lado e te ajuda na procura de direção para o teu caminho. É profundamente belo quando um ser humano ajuda outro, o toma pela mão rumo ao futuro. Por isso, e noto isso no livro acima, considero que a massificação dos processos de melhoria um empobrecimento. Este trabalho delicado é convertido em técnica para fazer isto ou aquilo em sete dias, em quinze ou num mês. Parece um fábrica com uma linha de montagem, onde o pobre iniciado entra para que receba todo o tipo de inputs que farão dele os cinco por cento dos afortunados deste planeta.
Planeio continuar com os hábitos da minha “Manhã milagrosa”: são positivos, validados e ajudam-me a crescer. Mas, conhecedor das minhas fragilidades, temperarei tudo isso com um grão de sal, pedindo ajuda ao cozinheiro para apurar a peça: só ele dá o sabor e a graça.