
Numa roda de quatro amigos, que batizámos de “pessoas inquietas”, cada um ficou de escrever um texto que fosse um reflexo das suas inquietações. A partir daí, conversamos e debatemos sobre este mundo e o outro. Partilho aqui o que escrevi.
“Regressar a Jesus”. Este é o título de um livro de um teólogo espanhol, Jose Antonio Pagola. Para mim é o desafio mais premente e, simultaneamente, o mais difícil de concretizar.
Como podemos dizer que a Igreja, as comunidades cristãs, as paróquias devem iniciar esse movimento de regresso a Jesus? Não celebramos a Eucaristia e rezamos o terço em nome de Jesus?
A verdade é que abunda a vivência de um cristianismo sociológico e cultural. Entendo por esta expressão, pouco rigorosa, um modo de ser e de estar que abarca práticas rituais, vivências comunitárias, códigos morais e éticos que foram herdados e que compreendem uma certa forma de estar no mundo que faz dos cristãos “boas pessoas”. Nesta visão, ser cristão acaba por ter uma conotação sobretudo moral. Pegando numa distinção útil, mas possivelmente falaciosa, entre os conceitos de “Religião” e de “Fé”, estes cristãos são sobretudo pessoas religiosas. Caricaturando, são pessoas que frequentam os sacramentos, regem-se pelos “valores” do cristianismo, procuram ter uma consciência reta, são, fundamentalmente “boas pessoas”. No entanto, parece que tratam o Cristo com cerimónia, falta-lhes à-vontade com ele. Falam dele na terceira pessoa.
Onde estão aqueles que fizeram de Deus uma experiência de fogo? Os que lutaram durante toda a noite com o Inabarcável, os que batem noite e dia à porta do céu suplicando a água-viva das nascentes que lave as raízes inquinadas? Quantas pessoas teremos encontrado na nossa vida, verdadeiramente apaixonadas pelo Cristo, pessoas que falam incessantemente com ele, pessoas que não são moralmente perfeitas, mas sofrem as dores da alienação do seu ser, suplicando uma palavra que cure e alevante?
No diálogo entre a Igreja e o Mundo quase todas as pontes foram queimadas. O discurso autorreferencial cristão, tão criticado pelo Papa Francisco, está aí, de pedra e cal. Não há nenhuma palavra que possamos dizer que faça estremecer os nossos contemporâneos. Quando Paulo de Tarso falou aos atenienses, no final estes disseram com condescendência: “Havemos de ouvir-te mais tarde”. Insistimos no discurso, na palavra que cremos performativa, mas os nossos contemporâneos não ouvem.
Nos primeiros séculos do cristianismo, quando este se tornou religião oficial do império romano e, portanto, aburguesado, um conjunto de homens fugiu para o deserto para viver a radicalidade do Evangelho. Assumiam, por vezes, comportamentos extravagantes, mas eram, sempre, um sinal perturbador. Eram uma linguagem viva, muda, mas sonora até à surdez. E é isso que hoje falta. Quantas pessoas queimadas pelo amor de Deus teremos encontrado?
Há um trabalho, no ginásio espiritual, que tem de ser feito, para que os cristãos se forjem e possam ser um sinal incandescente para o contemporâneo sonolento no seu sofá.
E esta é a minha maior inquietação: como, começando por mim, se poderá suscitar cristãos ‘embriagados’ (expressão do teólogo ortodoxo Paul Evdokimov) pelo amor de Deus e que irradiam uma felicidade que não tem raiz neste mundo? Como despertar pessoas e comunidades para fora do sono de um cristianismo morno, sem chama, ritualista e burguês? Como suscitar “loucos por Cristo?”