A voz aos amigos (XXXII)

O padre na literatura (VIII)

Béla Just (1906-1954) nasceu em Budapeste, mas deixou a Hungria por causa do comunismo e das suas convicções católicas, instalando-se na França. Proponho um romance pouco conhecido de um autor também pouco conhecido: “La Potence et la Croix” que é uma reflexão sobre a questão da pena de morte. Baseia-se em acontecimentos reais, a experiência dum sacerdote húngaro, capelão do corredor da morte, na transição entre o Antigo Regime e a ditadura comunista.

Ao acompanhar, nos derradeiros momentos, homens e mulheres que a justiça humana decidiu suprimir (na sua maioria por questões políticas), este anónimo sacerdote sabia que “não tinha outra coisa senão a palavra, com todas as suas imperfeições” para uma pastoral de proximidade. E se, de vez em quando, obtinha algum resultado não o considerava fruto da sua eloquência, mas a alguma das suas próprias fragilidades: “naquela atmosfera, o gesto mais simples tornava-se importante, um tremor na voz ou um suspiro exprimiria algo de inteligível, talvez o do instinto de sobrevivência diante do nada”.

Um padre que vive um dilema excruciante. Por um lado, é um mediador que leva a misericórdia de Deus àqueles condenados, mas, como auxiliar das execuções decididas pelo poder vigente, sente-se um colaborador do processo desumanizador. Impressiona a figura do carrasco, o seu “sentido do dever”, a indiferença profissional diante do “pedaço” de humanidade que tem diante de si.

Proximidade com a experiência da solidão, com a hora da morte a aproximar-se inexoravelmente: “Que horas são?” pergunta o condenado. A mais banal das perguntas ganhava, nos momentos que antecedem, o peso de toda uma existência. Pensava para consigo o padre: “responder-lhe era como atirar-lhe à cara a terrível realidade: daqui a trinta minutos não passará ele de um corpo […] enquanto tudo o mais à sua volta continuaria a viver. Tudo… tudo… também eu!” Queria o pobre ajoelhar-se para se confessar, mas o padre a pensar “quem devia ajoelhar-se era eu”.

Naquelas execuções – e o padre esteve em mais de trinta – repetia-se a de há dois mil anos atrás [e era um crucifixo a última visão que o desgraçado levava deste mundo, antes de lhe vendarem os olhos, antes de todo o “processo” … o rosto a escorrer suor… o não abrir a boca…] E, no final do “serviço”, também o sacerdote ia ao escritório receber a paga, após uma assinatura na folha de serviço. “Como é fim-de-semana, honorários a dobrar” comentava o funcionário. O padre repara no dinheiro que recebeu na mão: cinco vezes mais do que o dinheiro que aquele desgraçado, há pouco executado, roubara e que o levou ao cadafalso!!!

Serão estes dilemas que o prepararão para uma tomada de posição, revelada no fim. Para demonstrar que ele tem o poder na mão de não ser engrenagem do sistema. Imitará na pele a perspetiva teológica da “substituição vicária” de Cristo, ajudando um dos condenados a evadir-se, ficando no seu lugar, para suplantar aquela diferença inicial e essencial de ambos: “comportasse-me como me comportasse, por mais completa que fosse a minha compreensão da angústia deles [dos condenados à morte], havia sempre o facto que, enquanto esses seriam justiçados num tempo mais ou menos longo, eu continuaria, ainda assim, a viver.

A presença por um par de anos junto destes condenados levou o padre a chegar à seguinte conclusão: “os dias dos condenados à morte transcorria sobre o fio que separa a vida da morte. […] Impressionava-me aquela angústia causada pelo aproximar-se da morte e não do medo da morte em si. Isso tornava-me mais sensível ao mistério, até então para mim incompreensível, da vida e da condição humana. Compreendi então que a humanidade, considerada no seu todo, não é uma noção abstrata, mas qualquer coisa de real, como é real a existência de todo e qualquer homem preso individualmente; que a solidariedade é muito mais do que um pensamento nobre; que o assassinato de um ser humano é apontado diretamente a mim.”

Humberto Martins

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