
Leio: “Senhor, Deus omnipotente, tudo está sujeito ao teu poder”. Leio e, instintivamente, qualifico esta palavra como intragável. Na linguagem quotidiana designamos assim o que não presta, nada vale, causa repulsa. Ali, intragável é algo que não se pode tragar, não passa no pescoço, fica preso. Talvez seja um pedaço grande demais ou estranho demais ao paladar, em suma, não dá para assimilar.
O reino da fé está pejado de escolhos destes: verdades que desafiam a mais elementar das evidências, desafiam os alicerces a partir dos quais fomos encontrando o nosso lugar no mundo, a nossa mundivisão. Não só desafiam como deitam por terra esse edifício. Ninguém simpatizará se lhe disserem que nada daquilo em que acredita é verdade, do género: a realidade não existe; ou então, a realidade é apenas aparente.
Não queremos esse paiol de dinamite sob as nossas convicções mais sólidas. Queremos previsibilidade e razoabilidade: um, dois três quatro, quatro, três, dois, um. Isto sim. Chamamos a isso sabedoria, saber estar no mundo, sensatez. Não queremos palavras intragáveis. Deus diz que tudo está sujeito ao seu poder e que ninguém pode resistir à sua vontade e nós olhamos para o mundo e lançamos fora essa palavra intragável. Deus não pode mandar nisto tudo e o mundo estar como está. Assim, impercetivelmente, atiramos borda fora tudo que custa a mastigar e ficamos apenas com o pão sem côdea. Por isso a nossa fé é impostora. Era preferível lutar contra Deus como Jacob, ou fugir dele como Job, mas bem pior é termos a atitude dos fariseus que riam daquilo que Jesus dizia ou dos atenienses “chutando” Paulo para canto: ‘havemos de ouvir-te mais tarde’. E assim, domesticamos a nossa fé, ornamento na construção que entendemos fazer da nossa vida.
Os profetas não pregavam uma mensagem. Tinha sido a mensagem a estilhaçar a sua vida, agora em chamas, e eles lá iam, de plantadores de árvores e guardadores de rebanhos a arautos desabrigados da palavra intragável, impossível de atender e entender pelos poderosos, pelos sábios, pelos atarefados.