
Falei ontem com o meu amigo.
Como têm sido estes dias, de uma parte a esta? Estranhos, disse…
Exteriormente, depois das férias regressou ao trabalho: rotinas, hábitos, projetos, desejos de melhorar aqui e ali. É bom. Se alguém me vê de fora, afirmou, tudo está a seguir o seu curso. A mesma pessoa, as mesmas idas e vindas. (Como dizia uma antiga música brasileira: “Tudo está em seu lugar/ Graças a Deus”). Já não é bênção pequena que as coisas possa seguir o seu curso sem sobressaltos, garantiu-me.
Quando estávamos perto de uma árvore tão bela quanto digna, parou. Começou a dizer coisas estranhas: que de algumas semanas a esta parte, algum dique dentro de si rebentara. Os dias têm vindo cheios, carregados, atarefados, mas adentro uma serenidade descida das terras altas insinuava-se nos interstícios do coração, como se de repente a bitola proposta insidiosamente pela doxa (disse-me que era o senso comum não verificado) não imperasse.
Eu estava desconcertado. Ele explicou: a doxa diz que a semana de trabalho é penosa e que é bom o fim de semana. E se, perguntou-me, essa distinção deixasse de ser assim tão pronunciada? Não basta ter uma semana particularmente feliz e recompensadora e um contratempo ao fim de semana? Basta receber coisas boas num momento ou noutro e as contas baralham-se.
Alguma coisa estava a mudar em mim, disse. Percebi que subia no caminho, como quem se vai afastando da aldeia, com as suas conversas, hábitos, rotinas, e descobre uma nova respiração, uma nova mentalidade uma outra escala de valores. Lembrei-me de uns versos de A. Ramos Rosa e que talvez fossem a pergunta a que o meu amigo estaria encontrando resposta:
“Eu quero estar vivo apesar de tudo
para que me dês a oportunidade de uma outra vida nesta
Será que ainda posso ser o que nunca fui
e que julguei que nunca poderia ser?”
Talvez o meu amigo estivesse nesse caminho, descobrindo novas realidades inabitadas e inexploradas. Quem sabe? Um novo andamento vivencial. Talvez, pela primeira vez, tenha visto a outra margem, esbatida mas real.