
A minha mente e o meu espírito têm o seu conjunto de pensamentos, especialmente erráticos nos primeiros momentos depois de acordar. Quando me aproximo da Palavra de Deus, interrompe-se o ciclo de pensamentos, com as suas compulsões, as suas prioridades, a sua escala de valores. A Palavra de Deus, se acreditada, é disrupção e deslocação. E isso é bom, porque me descentra de mim, dos caprichos do Ego, da estreiteza da minha forma de entender a vida, da entropia e da pequenez. Quando a antífona do Salmo diz: “Exulta de alegria no Senhor!” não é um desejo piedoso ou quimérico, mas uma injunção séria: um movimento de abandono de um caminho para entrar num outro. Esse movimento é o passar do Egodrama ao Teodrama. E a vida cristã é sempre esse trânsito da entropia às “planícies ilimitadas de Deus”, como escreveu o poeta Ruy Belo. Essa passagem do Egodrama ao Teodrama é sempre fonte de alegria e liberdade. É uma passagem do quarto claustrofóbico à paisagem aberta e fresca.
“É perigoso o homem de um só livro”, diziam-me em tempos. “Livro” em sentido metafórico: há muitas formas de totalitarismo na nossa vida, muitas avenidas de um sentido só. Ficamos presos a esta forma de pensar, a este juízo sobre os outros e sobre a vida. E é isso que é perigoso. A Palavra de Deus é sempre uma pedra de tropeço na minha mundivisão. É como as setas de direção do caminho de Santiago, sem as quais o peregrino caminha errante.
A direção para que aponta a Palavra de Deus não é da ordem da moral ou do exortativo, mas existencial e terapêutico. Isto é muito importante porque, estou convencido, não poucos cristãos fazem da religião um adorno sossegado. Contudo, essa Palavra tem a força de uma tempestade, vento que tudo varre.
O teólogo Karl Rahner falava das palavras “vindas de baixo” e das palavras “vindas de cima”. É uma metáfora espacial muito usada na religião (cima/baixo), mas elucidativa daquilo que pretendo dizer: se ficamos limitados às palavras vindas de baixo, com certeza que respiramos na mesma, mas o ar é mais poluído e menos benfazejo. Temos de trazer ao nosso dia essas palavras lá de cima. Dizemos, na linguagem teológica que a Palavra de Deus é performativa – isto é, faz aquilo que diz. Esta realidade tem uma força tremenda porque se uma palavra tem esse poder, ela, no limite, pode dar o que de mais precioso a nossa vida tem: a felicidade.
Termino, recorrendo de novo, a um episódio do Antigo Testamento, que já por aqui citei: o vale de ossos que, quando visitados pelo sopro de Deus, recobram a vida e tornam-se um conjunto de seres viventes. A Palavra, o sopro, o hálito, não existem para ornamentar a nossa existência, mas para fazerem de nós seres viventes, nós que, no dizer de S. Gregório de Nissa, “vivemos uma vida morta”.