A voz aos amigos (XXVII)

A figura do padre na Literatura (6)

No final do seu romance com maior notoriedade – “Os santos vão para o inferno” – Gilbert Cesbron escreveu a data “Maio de 1951”. A pena deste escritor católico parisiense entra aqui pela problemática dos padres operários, lançando uma luz impiedosa sobre a miséria dos bairros da classe operária dos subúrbios de Paris do pós-guerra. Marcel, o bêbado que bate sistematicamente no filho; Ahmed, o magrebino, informador da polícia; Suzanne, a prostituta convertida; Henri, o camarada sindicalista… um mundo inteiro de exaustão, miséria e fracasso rodeia Pedro, o sucessor de Bernard, dos padres operários.
Com Pedro, os dramas e sofrimentos, os combates do bairro de Sagny, tornam-se nossos combates: ao tentar alojar e arranjar emprego, vamos também entrando nos dramas espirituais de homens que se questionam se a sua missão é simplesmente o assistencialismo. O evangelho feito vida por vezes em rota de colisão com uma igreja institucional. O pároco de Sagny representa essa Igreja institucional mais preocupada com a “preservação” do que com a ousadia ou as periferias. Pedro e Bernard não conseguem fugir à questão: será que tudo isto que fazemos é evangelização? Não será que tudo isto trai a vocação primeira que é sobretudo a de difundir a palavra de Jesus Cristo? Mas, também, não será que, sem esta incarnação do evangelho, não ficaria ele reduzido a uma ideia abstrata a um sentimento? Este é, portanto, um romance de fé e de dúvida, mas também se pode dizer que é um romance de compromisso: “não espero convencer ninguém… cada um se convence a si mesmo… já seria suficiente se abanasse alguns espíritos livres” diz Cesbron no prefácio.
Por isso, é também um romance de busca do que é a identidade, a especificidade de um carisma. O padre-operário, chamado pela miséria dos outros, sente-se impelido a ajudar, a desenrascar sem descanso. Porém a tentação, sempre à espreita, é ceder à organização, de construir “boas obras”, porque sabe que é preciso primeiramente salvar os corpos, caso contrário, não se pode sonhar sequer salvar almas (a dimensão sacerdotal). E, Pedro, depois de desenrascar pela enésima vez um tuberculoso moribundo, sempre em fuga dos hospitais, confessa: “devia ter pensado na sua confissão, mas só consegui pensar no hospital… fosse o pároco de Sagny, teria pensado primeiramente na confissão”. O padre-operário, encalhado entre este meio, no qual se “converteu” fazendo-o seu, e a Igreja tradicional “casa-se” com a causa operária a ponto de arriscar adoentar-se com ela e já não conseguir mais amar os outros. Mas os outros, apesar do seu afastamento, da sua injustiça, são, no entanto, também “os seus”, irmãos na fé e na Igreja, apesar de tudo.
E Pedro não se iliba de sofrer a contestação suprema: aquela de um camarada que o acusa de se passear somente pelo inferno de Sagny: “tu podes sair daqui quando o quiseres. Quando te cansares de nós, vestes-te de batina preta e partes para uma paróquia… Quando se sabe que podemos sair daqui isso muda tudo”. O novo arcebispo, ao chamar Pedro ao palácio episcopal vai-lhe pedir contas das suas “imprudências”: “quantos batismos, comunhões, casamentos, assistências à missa, quantas?” “Muito pouco, na verdade. Mas uma fraternidade…”, responde-lhe Pedro. E, agora, é-lhe pedido o supremo sacrifício, o da humildade… o “deslocado” será substituído por um padre que passe à fase da organização duma comunidade cristã que possa edificar, no concreto, esse ideal fraternal. E Pedro, parte, obedientemente!


Humberto Martins

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