Durante estas férias de verão tenho estado a ler estes dois livros. O primeiro, em papel. O segundo, em formato digital. Neste caso, com a vantagem de ter podido baixar toda a coleção de livros de Dostoievski de forma gratuita. Que tempos afortunados, estes que vivemos!
Começo pelo “Fio da Navalha”, cujo autor é Somerset Maugham. O livro é narrado na primeira pessoa, sendo o seu autor interveniente na narrativa e gira à volta de uma família norte-americana que vive entre Chicago e Paris. No centro da narrativa está Larry Darrell. Socorro-me de uma breve sinopse retirada desse site benemérito chamado Wikipedia: “A vida do aviador Larry Darrell muda para sempre quando um amigo e colega de combate morre ao tentar salvá-lo. O inexorável mistério da morte leva-o a questionar o significado último da frágil condição humana e a embarcar numa obstinada e redentora odisseia espiritual.” Maugham descreve os seus encontros e desencontros com Larry, as longas conversas com ele. Narra, também, as relações que estabelece com os membros da família de Isabel, com quem Larry acaba por não casar, por força, precisamente, do seu questionamento sobre a existência que leva, que quer levar e pelo desencanto com o estilo de vida que o casamento suporá. Há muitos aspetos interessantes e diversos ângulos de análise. O percurso espiritual do protagonista lembra alguns personagens de livros de Herman Hesse. Pessoalmente, gosto sempre de ler sobre personagens ficcionais ou reais que mostraram desencanto com o modo de vida das pessoas que viam à sua volta.
Uma parte considerável dos diálogos passa-se em Paris e na Riviera. Nesta última, vive o autor do livro e contacta frequentemente com um tio de Isabel, a quintessência do chic, do luxo e da vida social. Embora não pertença a esse ciclo nem o cerne do livro sejam as deambulações artísticas do escritor, dá para perceber que ele se move com facilidade nesses meios. Fica-se a perceber o que eram, nos anos trinta, os círculos sociais mais aristocratas e finos. O autor descreve muito bem todo esse ambiente, desde o vestuário, aos restaurantes, salões, casas e receções. Confirmo a impressão que tenho sempre: círculos muito fechados e sofisticados. Ali estão as constantes da natureza humana: ver e ser visto; o dinheiro, o prestígio, o poder, o sucesso, a aparência por oposição ao genuíno.
É um mundo “visto de cima”, a partir dos vencedores, dos “ricos”, dos detentores do poder. Ao longo do livro, é gritante o contraste entre a procura existencial que Larry faz e este mundo da “upper class”. Ainda assim, é interessante como ele se move nesse mundo, presente mas ausente, sorridente mas distante.
No outro extremo da escala social, em “Crime e castigo” está o mundo onde Raskólnikov, um estudante revoltado e a viver miseravelmente, se desloca. Resumidamente, a obra relata os crimes cometidos pelo protagonista e todo o processo interior de culpa e expiação por que passará. Dostoievski descreve de forma crua o mundo desta “gentalha”: a miséria moral das personagens, a violência, as habitações exíguas, toscas e gastas, as roupas andrajosas do personagem principal. São descrições muito vívidas da miséria em que vivia uma parte da população russa no século XIX. Uma classe social a que ninguém deitava a mão, nem mesmo o Estado, entregue a si própria, indefesa e à mercê dos piores instintos do ser humano. O livro é um retrato muito duro de uma realidade que continua a existir, em relação à qual é difícil a um acomodado cidadão como eu aceder.
O paciente leitor já está a ver onde me levou a leitura que estou a fazer de ambos os livros: a vida, olhada de dois lugares diametralmente opostos: o glamour de uma receção para cem pessoas dada pelo tio de Isabel e o pequeno e sórdido quarto onde Raskólnikov arde em febre deitado num sofá velho, vestido com as suas roupas coçadas.
É forte, pervasiva e quase omnipresente uma das narrativas. A outra é pouco visitada. As duas chocalham na minha cabeça dividida entre a ignorância e a lucidez.