“O meu interior é uma atenção voltada para fora.”
Sophia de Mello Breyner Andresen

Conforme tinha dito no texto de ontem, achei prudente não fazer hoje a etapa mais longa, com cerca de trinta quilómetros e, assim, optei por dividi-la em duas metades. Hoje percorri cerca de quinze quilómetros entre Palas de Rei e Melide e, amanhã seguir-se-ão outros tantos até Arzúa.
A saída para a caminhada foi feita um pouco mais tarde. Nos dois primeiros dias, estava a caminhar entre as seis e quinze e as seis e trinta, ao passo que hoje a saída foi “tardia”, aí pelas sete e trinta. Esta hora de diferença é o suficiente para apanhar dois grupos de peregrinos bem distintos: o primeiro, madrugador, é composto por pessoas mais velhas, dos quarenta em diante. Os grupos são mais silenciosos e tranquilos. O segundo “comboio” é composto maioritariamente por gente jovem, sobretudo espanhóis, que falam alto e fazem barulho. Foi assim, hoje, ainda que alguns pedaços do caminho pudessem ter sido realizados com tranquilidade e silêncio.
Logo à saída do albergue estava uma família de quatro pessoas que eu já tinha topado em Porto Marín: um casal e dois filhos, uma raparigas aí com uns seis anos e um bebé. Transportavam os filhos num carrinho de três rodas e cobertura para o caso de chover. O mais pequenito dormia a sono solto. Fiquei admirado com esta família: fazerem o caminho de Santiago com estes dois pequenitos. Pensei como as conceções de educação são culturais. Muitos estrangeiros que tenho encontrado são mais descomplicados, mais simples e atirados para frente. Em Portugal, pelo menos a partir da minha experiência, há mais “overparenting” e, por isso, mais “flores de estufa.” Eu sou o mais novo de oito irmãos e passei muito tempo a brincar na rua, vindo a casa, nas férias, apenas para comer e dormir. Se dissesse que no auge das campanhas eleitorais, nos anos oitenta, me metia em carros e carrinhas de desconhecidos, durante as caravanas eleitorais ou que ia para os comícios com dez, doze anos sem qualquer adulto, facilmente os meus pais seriam denunciados à Comissão de Proteção de Menores. Por isso, fico sempre admirado por esta forma tão descomplicada e bela de entender a educação. Com certeza que este miúdos serão, um dia mais tarde, gente desempoeirada e despachada.
O caminho tem um bom grupo de gente, sobretudo espanhóis. Talvez estivessem sedentos por fazer uma experiência longa de caminhada na natureza… Curiosamente, ainda não encontrei nenhum português e mesmo estrangeiros tenho visto muito poucos.
O caminho francês é incomparavelmente mais belo que o português. Como tenho dito, todo ele está muito bem delimitado e o percurso por estrada, relativamente raro, é feito em vias secundárias praticamente sem trânsito motorizado. Os bosques são frondosos, com os seus muros de musgo que trepam pelo tronco das árvores. Quando corre o vento ou uma brisa mais ligeira, é uma delícia ouvir o som. Apesar de ontem à noite ter chovido copiosamente, o dia acordou com sol e, pela primeira vez neste caminho, a passagem pelos bosques foi brindada com o sol a dar cor e vida a todas as coisas. É verdadeiramente regenerador caminhar no meio da natureza. Não admira que os japoneses lhe chamem o “banho de natureza” e acreditem que há uma espécie de alma ou divindade escondidas. E não é difícil perceber que há uma mística muito particular na beleza de tudo o que envolve o caminhante. Difícil é pôr por escrito a comoção interior que se sente no meio de tanta beleza. R. M. Rilke disse que a maior parte das nossas experiências interiores se passam numa região onde a palavra não chega. Talvez apenas os poetas estejam lá perto… E que pena não termos “ferramentas” para partilhar com os outros esse lugar inexprimível, o que evitaria tanto dos nossos mal entendidos quando arremessamos palavras desordenadamente, praticantes que somos do ocultamento do ser.
Há medida que o tempo vai passando, as dificuldades parecem mais suportáveis e a lógica da superação mais comum. Isto é, parece-me que uma parte do problema não é físico mas mental. Dizer que andar quinze quilómetros com uma mochila às costas é fácil quando, nas dinâmicas rotineiras, mais algum peso das compras já me deixa a barafustar: Eis a grande diferença de atitude. Será que devia ser obrigatório fazer experiências regulares de superação de capacidades? Será que era isso que alguns modelos de educação mais antigos, mais “musculados”, faziam? Achei curioso um site que tinha como proposta um “boot camp” com o objetivo de, através de um conjunto díspar de atividades, promover este exercício de superação e de alargamento de fronteiras físicas e mentais. Faltará isso, hoje, às gerações mais novas?
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