A caminho de Santiago (III)

"That time
I thought I could not
go any closer to grief
without dying,
I went closer
And I did not dye"
Mary Oliver

Valha-me Cristo! Hoje foi uma etapa a doer. Vinte e cinco quilómetros, somados com a mochila às costas. Não pude deixar de me lembrar de uma cena poderosa do filme “A Missão”: Don Mendonza (penso que era o nome do personagem interpretado por Robert de Niro), depois de convertido, quer expiar as suas faltas. Nessa cena, ele sobe uma escarpa, com uma cascata ou catarata ao lado, carregando objetos associados ao seu passado de “conquistador”: despojos das pilhagens e talvez armamento. É uma cena comovente de um homem tocado pela graça de Deus, que quer reparar o mal feito.

Naturalmente que não tenho essa pretensão. Ainda assim, caminhar quase seis horas com uma mochila de oito quilos às costas não deixa de ter o seu simbolismo. Num curto espaço de tempo, passo das experiências diárias de conforto e do pão sem côdea, para uma outra onde mergulho a pique na dor. Nada do outro mundo, não tenho qualquer pretensão, repito, mas quero que o caminho me vá ensinando – e ele ensina. Hoje, parecia que Palas de Rei nunca mais chegava… o espírito estava forte mas as pernas pediam descanso. Quando saí, pelas seis e quinze da manhã, ainda escuro, revivi o meu outro caminho de Santiago: a incerteza de finalizar a etapa: iria o meu dedo “janjão” pregar-me uma partida? E a planta do pé esquerdo iria reclamar? Pior: a contratura na coxa esquerda seria minha companheira? Essa foi sim… todo o caminho com uma dor suportável mas constante e aborrecida. Pensei um pouco sobre o mistério da dor e do sofrimento. Quando nelas consentimos, que maravilhosa liberdade: parece que o mundo é nosso. Fui pensando na minha mente, na forma como quotidianamente me vende mentiras sobre mim e as minhas capacidades. Se estivesse nas minhas rotinas diárias, um décimo do que hoje fiz seria o suficiente para lançar as mãos ao céu. E, no entanto, ontem foram vinte e dois quilómetros e hoje mais vinte cinco, sempre com a mochila às costas. A menina mente faz sempre compressão sobre mim (“não conseguirás”) mas há uma força, uma coragem e uma energia em mim, em cada um de nós, que apenas espera oportunidade para se revelar.  Nas situações de “fight or flight” ativam-se em nós forças insuspeitadas e os nosso sentidos tornam-se quase sobre humanos. Mal comparado, é um pouco isso que acontece aqui no caminho: alargar as fronteiras do mar para paragens sempre novas.

A paisagem continua maravilhosa, serena e “talkative”. Todo o caminho está impecavelmente limpo, os belos muros de pedra sempre a fazerem companhia, árvore muito verdes de ramos entrelaçados umas nas outras, parecem fazer um teto ao peregrino que passa. Tantos “buen camino!” tantas vezes inesperados! Vou cruzando uma e outra vez companheiros de albergue, enquanto o som das gaitas de foles de uma antiga Irlanda celta ecoa nos meus ouvidos.

Chegado ao albergue um duche quente, forte, reparador. Que bênção! A seguir, no restaurante ao lado, uma “hamburguesa” com batatas fritas são a recompensa de uma manhã de trabalhos.

Amanhã, a etapa será de trinta quilómetros (madre mia) mas pondero fazê-la em dois dias: não quero “esticar a corda” mas também não quero fazer a caminhada demasiadamente depressa: sei lá quando poderei voltar!

Ao começar o dia não sabia de que forma iria terminar a etapa. Tive de dividir o tempo em quartos de hora, preenchê-los com oração, pensamentos vários, silêncio e conversa. Ficou bem mais suportável, mas… quem gosta de ter de lidar com a incerteza de não ser (pelo menos na sua cabeça) o senhor do seu tempo e dos seus passos? Como fazer acreditar a banalidade bem verdadeira de “um passo de cada vez”? Mas hoje foi mesmo assim. E quando é assim, deixamos que a mão invisível abra uma brecha na nossa racionalidade fechada.

Amanhã há mais!

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