Como uma seta

Há alguns dias atrás participei numa conversa onde estava presente um médico psiquiatra, já a caminho dos setenta anos, portanto com larga experiência clínica. Foi a segunda vez que marquei presença num encontro com ele e onde estava mais duas pessoas.
Nesse grupo de amigos, chamemos-lhe assim, trocámos impressões sobre este assunto e aquele – aparentemente, algo banal. Mas a nossa conversa foi tudo menos banal. Para lá do que conversámos, fiz uma experiência rara e emocionante: um puro e belo exercício de escuta, acolhimento e disponibilidade. Talvez os outros presentes não o tenham sentido da forma como eu senti, mas foi um momento extremamente tocante, de palavra e escuta, sem pressa para interromper, sem querer ter razão à custa da derrota do outro. Sempre que vamos para o campo, vemos como o ar é bem mais puro e revigorante que o da cidade. Assim foi aqui: quando podemos “elevar o espírito” e fazer uma experiência simples como esta, mas ao mesmo tempo regeneradora, alguma recobra vida em nós.
Tomando o fio à meada, a um dado momento da nossa conversa, o psiquiatra falou da sua experiência profissional, do que significava lidar com as maiores disfunções da pessoa humana e como isso “mexia” consigo como ser humano. E, na forma apaixonada e vigorosa como falava, a um determinado momento, explorando a sua reflexão sobre o ser humano, disse: “O ser humano é mau!”. Disse-o de forma categórica, como se esta frase tivesse sido temperada por anos e anos e anos de contacto, escuta e acompanhamento de pacientes bem como, certamente, a partir da sua própria experiência pessoal não clínica.
Esta frase ficou a arder nos meus ouvidos até ao dia de hoje. Confesso que me perturbou. Não que tenha recebido uma novidade ou me tenha despertado para algo sobre o qual não tenha pensado. Claro que penso nisto. É verdade que as generalizações são sempre totalitárias, uma forma de terrorismo. E estou certo de que este médico conheceu e conhece bastas vezes a bondade, o amor e o altruísmo.
Ainda assim, ele estava a afirmar que a nossa condição humana é, não apenas frágil e vulnerável, mas profundamente marcada pelo mal. Esse mal manifesta-se de formas múltiplas e aninha-se nos refolhos mais íntimos da alma, expandindo-se de forma aberta ou dissimulada, através pensamentos subtis ou ações abomináveis.
Concordará o leitor com este travo, para muitos, pessimista? Qual a experiência da sua vida ao cruzar-se com dezenas ou centenas de pessoas ao longo da sua vida? Será a visão ingénua e crédula na bondade do ser humano aquela mais correta? Ou o homem é intrinsecamente mau? Que encontra o leitor dentro de si, no mais profundo dos seus pensamentos, das suas emoções?
A frase dita por este psiquiatra continua a ressoar nos meus ouvidos. Sempre fui intuitivo e, talvez, um pouco ingénuo nas primeiras aproximações que ia fazendo a outras pessoas. Com o passar do tempo, com o desvendamento do meu coração, da minha alma e com a experiência da própria vida, tenho passado a ser muito mais prudente nos meus juízos. E isto, não porque tenha feito uma experiência negativa marcante ou por puro taticismo. A verdade é que não nos conhecemos, não queremos afrontar a nossa zona mais negra e quando não o fazemos, alguém vai pagar, ainda que, em termos palpáveis, não mexamos um dedo.
Quem sabe se, comum à nossa natureza, exista a necessidade de uma medicina: alguém que nos levante, pense as feridas, aponte um caminho, sustente os nossos passos, lave os nossos olhos com colírio, fazendo de nós viventes.

4 thoughts on “Como uma seta

  1. Acreditando profundamente, como acredito, que Deus é Bom, Belo e é a Divinização do Amor e tendo Ele criado cada um de nós à Sua imagem e semelhança, só posso concluir que cada um de nós é intrinsecamente bom. Podemos é lutar mais, ou menos. Optar mais, ou menos, pelo bem. Mas a nossa essência, a nossa marca original só pode ser a do Bem pois nascemos pelo ato de Amor que é a Criação. E não há nada maior que o Amor.

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