O padre na literatura (IV)

Já era um romancista bem conhecido no Japão quando, em 1969, Shusaku Endo publicou o romance “O Silêncio”. Este romance ficou sobretudo conhecido entre nós com a adaptação cinematográfica de Martin Scorsese, num filme homónimo de 2016.
Profeticamente o protagonista, o padre jesuíta português, Sebastião Rodrigues, antes da sua viagem de conversão, dirá assim: “nós os sacerdotes somos em certos aspetos um grupo triste. Nascido no mundo para servir a humanidade, não existe ninguém mais desgraçadamente solidário que o padre que já não está à altura da sua missão”. Sim nem Rodrigues, nem Cristóvão Ferreira, o anterior Superior Provincial dos Jesuítas do Japão, ao não estarem à altura da sua missão, porque apostaram (renunciaram publicamente à fé através dum processo formal), paradoxalmente, tornaram-se solidários com os “kakure kirischitan” [os cristãos débeis que, como Kichijiro, um fiel companheiro de Rodrigues junto dele até ao fim, como um cão, renegaram repetidas vezes a sua fé de cristãos, através do ato formal de pisar um fumié (uma imagem de Cristo)].
É claro que este romance é muito mais do que um romance de padres. Trata-se de facto sobre o encontro da cultura europeia com a asiática; de religiões e filosofias de vida diversas… mas também fala do silêncio de Deus, “de braços cruzados” diante do sofrimento dos que passam pelo martírio por causa da fé, num Japão tornado intolerante à fé cristã e que os perseguia até à morte. Um padre a braços com o silêncio de Deus e que chega a pôr em questão a existência desse mesmo Deus.
Mas, o romance é a história duma conversão mais do que a história da missionação. Rodrigues chega ao Japão com uma ideia (um rosto) de Cristo adquirida durante a sua formação no seminário em Lisboa. Um Cristo radiante, forte e glorioso, patriarcal, mas demasiado distante em virtude da sua transcendência. Depois de ter sido capturado ele começou a justapor o seu próprio destino ao destino de Jesus. Ao fazê-lo, o símbolo de autoridade de Cristo começa a desvanecer-se e começou a aproximar-se do humano, nas suas contradições.
O Senhor feudal Enoue dirá a Rodrigues, no interrogatório, que a árvore que é o cristianismo jamais se poderia adaptar ao pântano que é o Japão. Há uma certa verdade nisso. Quando a missionação pensa que é só chegar e encher vasilhame vazio que estava ali há séculos pronto para ser enchido… a verdade, porém é que antes o vasilhame não estaria vazio e o que estava antes inquina o vinho que é colocado dentro. Cristo, no Japão, começava a adquirir caraterísticas de um indefeso, débil e vulnerável companheiro e amigo que perdoa o apóstata reincidente. Aos poucos e poucos a religião, vinda da Europa, com um cunho patriarcal e triunfante se transforma em matriarcal (uma mãe que está sempre pronta a perdoar as faltas dos seus filhos, as vezes que for preciso).
Rodrigues acaba também por apostatar, e a notícia chegará a Roma… E agora, este padre, com um nome japonês, com mulher e filhos, compreenderá, de forma muito sofrida, que é imperativo ser a imagem de um Cristo companheiro que caminha com esta igreja do silêncio e da apostasia reiterada. Será Kichijiro aquele que reclama uma atenção à figura do Judas, do traidor de Jesus, isto porque nem todos nasceram suficientemente fortes para abraçar o martírio. E Rodrigues, depois da apostasia, descobre que não há diferença entre ele e Kichijiro (não há clericalismo, separação da esfera profana e sacra que um hábito talar pretende simbolizar) nem de todos esses que são obrigados a carregar consigo a consciência da culpa e viver excluídos em virtude de um seu ato formal. É o próprio Kichijiro que se lamenta que, numa época diferente, metade dos apóstatas haveria de constituir uma boa mole de bons cristãos… E Rodrigues, pela primeira vez se torna a voz desses descartados da religião institucional, o “último dos sacerdotes no Japão”. “Apenas Deus conhece a minha debilidade e apenas Deus julgar-me-á” dirá. Sim, Rodrigues pisa o fumié, mas ninguém pode arrancar do seu coração o seu amor pelos cristãos nem por Cristo. Ele decide pisar a imagem porque percebe que aquilo que ele considera fidelidade a Deus não passava, na realidade, de um amor autorreferencial (a preocupação pela salvação da sua própria alma).
Chegado a este ponto da sua transformação existencial, Rodrigues pode dizer, com S. Paulo, que “não há forte nem fraco”, quando são derrubados todos os muros, pois “a Igreja não possui Cristo, a sua presença não se confina à Igreja. Mas é na Igreja que aprendemos a reconhecer a presença de Cristo fora dela” (Stanley Hauerwas).
“O Silêncio”, uma boa leitura para férias!
Humberto Martins