Delicadeza

I. Ontem fui pela primeira vez a um espetáculo de bailado. Ocorreu no Coliseu do Porto, com todas as medidas de segurança previstas e adotadas. Não foi um bailado de um compositor, mas um conjunto variado de alunas (maioritariamente, mas não exclusivamente) de diferentes escolas de dança, aqui do Porto e de outras paragens. Houve reportório clássico e contemporâneo. Alguns números não apreciei especialmente, mas vários outros encheram-me as medidas. Apreciei o labor que está por trás das performances, as horas de trabalho e esforço; a coragem para aparecer diante do público – a esse propósito estava lá um rapazito que não deveria ter mais de seis ou sete anos. Muito bonito! Gostei especialmente da beleza, harmonia e graciosidade dos movimentos do corpo, assim como a sincronização dos diferentes elementos que atuavam em palco. Com os adereços, as roupas e as cores, tudo contribuía para a exaltação da maravilha que é o corpo humano.
Todos os movimentos tinham um propósito e serviam à beleza e à harmonia. Naturalmente que esta facto é sobretudo verdadeiro durante a performance em si, mas, para mim, estive especialmente atento à forma como as bailarinas entravam e saíam do palco: sempre com movimentos estudados e partilhados, procurando não estar dissonantes com o que se passaria depois da entrada e não destoando, à saída, com aquilo que tinham executado. Entrar e sair de cena não eram momentos preparatórios, mas partes de um todo.


II. Esta manhã, como faço praticamente todos os dias, fiz mais uma caminhada de cerca de uma hora. A um dado momento divergi por um outro percurso que me levou a um calçadão junto ao mar. Os cestos do lixo estavam cheios até transbordar, mas havia garrafas, papeis e plástico no chão. Tudo muito sujo e pouco cuidado. Fico sempre triste com o descuido dos espaços públicos, com uma certa mentalidade e prática de usar, gastar e estragar. Também as trotinetes deixadas ao acaso, atiradas para o chão, tudo isso me deixa triste pela sujidade, a falta de beleza e harmonia e uma atitude de descuido com o que é de todos. Que contraste com o que tinha visto na noite anterior no Coliseu.


III. Já depois da caminhada, e em casa, topei com esta frase de um velho monge beneditino (hoje é a solenidade de S. Bento, padroeiro da Europa): “Fazer, com o máximo de zelo, as coisas insignificantes”. Achei esta frase maravilhosa. Desparece a dicotomia entre o que consideramos importante ou de valor e o que achamos de pouco interesse. O que quer que façamos, pode ter uma dignidade e uma intencionalidade especiais. Assim, podemos estar a trazer beleza e harmonia aos nossos dias.
Estes três momentos fizeram-me pensar um pouco. Todos os dias fazemos coisas, movimentamo-nos, falamos e agimos. Que seria se tudo isso que sou “eu e a minha circunstância” fossem impregnados desse zelo pela procura de harmonia e beleza e cuidado? Arrumaria a minha secretária de uma certa forma, levantar-me-ia e sentar-me-ia de uma certa forma, cuidaria da minha roupa com um outro cuidado, disporia das coisas de minha casa com ordem, alegria e consonância. O paciente leitor saberá, na sua vida, naquilo que toca, como ter a mesma graciosidade, que, ontem, tiveram as bailarinas no momento de entrar e sair do palco. Este zelo em procurar a beleza beneficia quem o faz e beneficia quem está à sua volta.
Faltam, hoje, graça e delicadeza em muitas coisas… quem sabe, pudéssemos, silenciosamente, começar uma revolução.

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