O padre na literatura (III)

O “Diário de um pároco de aldeia” é a obra-prima de Georges Bernanos. Publicado em 1936 é um romance ao modo de um diário de um jovem padre que ali deposita “os insignificantes segredos de uma vida” a serem lidos só por ele.
“A minha paróquia é uma paróquia como qualquer outra”, abre assim. Ali, como noutros lugares, bem e mal coabitam em tensão, como dois líquidos de densidade diversa. Mas, ao fim, “tudo é graça”. A católica aldeia de Ambricourt, no norte de França, no virar do século XIX, não se pode pensar imune ao secularismo que abarca tudo como uma névoa fria.
“À minha paróquia devora-a o tédio […] consome-a a olhos vistos, e nós sem nada podermos fazer. Não tarda muito que estejamos contagiados e venhamos a encontrar esse cancro dentro de nós mesmos”. Observando-a de longe, a paróquia “dava a impressão de se ter agachado ali, sobre a erva encharcada, como um pobre animal exausto”.
Pela simplicidade e “infância espiritual” de um jovem padre de origem humilde, alcoólico e doente, Bernanos expõe a sua própria reflexão sobre o catolicismo francês num crescendo que passa do registo ensaístico ao romance. De facto, o anónimo prior de Ambricourt constata que, no panorama francês, o discurso religioso se vai tornando cada vez mais marginal e insignificante, como que “um cristianismo em decomposição”. O clero tenta manter uma doutrina austera, num vocabulário gasto, “mas tão seguro que não choca ninguém, só tendo o mérito de desencorajar comentários irónicos por força de vagueza e do aborrecimento” de quem o escuta. Ao jovem pároco impressiona-lhe o negacionismo das autoridades eclesiásticas que se imaginam ainda à frente dos destinos duma nação toda ela cristã. Quando se encontram, nota-se um “grande orgulho inconsciente. [Porém,] nenhum destes homens acreditaria que a sua Igreja estaria em perigo, por qualquer razão que fosse.” Arremata o jovem: “A segurança deles me dá medo.”
Este protagonista, inquieto e zeloso, que vive à margem da sociedade por causa da sua vocação, da sua pobreza e da sua simplicidade desarmante, quase infantil, ainda assim assume como seus os problemas dos que lhe estão confiados e nos ajuda a pensar no papel do padre numa sociedade em transformação cada vez mais acelerada em que a religião tem cada vez menos peso no quotidiano das pessoas.
Por outro lado, ele não quer seguir o caminho dos “padres letrados” que é o compromisso e a diluição com o imanentismo. A verdade do evangelho vale por si só. Animado por um zelo quase revolucionário, como é apanágio dos santos, este pastor acredita que não deve aparecer só quando dele precisam, mas que é chamado a ter um papel mais ativo na transformação da sociedade pela dimensão transcendente. Se o positivismo – presente dentro e fora da Igreja – acredita na inércia genética, no atavismo sociológico, o jovem pároco acredita que é a solidariedade uns com os outros que pode gerar transformações e preservar o livre arbítrio.
É a verdade da alma humana que aqui se desvela, a graça que se perde pelas fendas deste vaso de barro imperfeito. As ovelhas do seu rebanho, como “os cavalos teimosos”, que ele observava quando criança a serem ferrados na sua aldeia, opõem-se muito frequentemente ao pastor, quer sejam as crianças zombadoras do catecismo, os aldeões rudes ou o nobre no seu castelo, todos eles atordoados e esmagados pelo destino, deixaram de fazer resistência. E um acontecimento extraordinário – a amizade – irrompe subitamente nesta rotina sombria e triste, com um passeio de moto, um raio de sol, pré-anúncio de ressurreição.

Humberto Martins

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