A luminosa presença da graça

A forma como um corvo
Lançou sobre mim
A poeira da neve
De uma árvore de cicuta

Deu ao meu coração
Uma mudança de humor
E salvou uma parte
De um dia que tinha destruído.
Robert Frost
Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer:
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.
Eugénio de Andrade

Há dias em que o que Eugénio de Andrade escreve é real: de manhã à noite, a jornada é uma sucessão de lixo despejado sobre a alma. A criança-dentro ressente-se, esbraceja, grita. A rotina pesa sobre os ombros. Desde o despertar ao anoitecer parece que empurramos o dia sem topar com um qualquer oásis que nos traga a beleza do vento alto nas árvores. Pior, há períodos em que os dias se sucedem sem nada onde nos agarrarmos. Aparentemente, a vida segue igual, sem sobressaltos, mas a alma está vergada à repetição do arco.
Até que, inesperadamente, por uma fresta, entra alguma coisa que faz o coração reviver. Alguma coisa que, por ser inesperada, se torna docemente saborosa. E, quando essa visita nos reconcilia com o género humano, uma pequena festa iluminada acontece na alma.
Aqui há dias, uma conversa com uma colega de trabalho foi isso mesmo. Passamos dezenas de vezes uns pelos outros, quem sabe durante anos, e nada acontece. Navios que se cruzam na noite. E de repente, como por acaso, conversamos durante uma longa hora. Quase a pique, descemos ao lugar do coração onde mora a nossa forma única e irrepetível de ver o mundo. Escutamo-nos mutuamente, cada um falando a partir das suas vivências, das suas impressões e pontos de vista. O reduto mais secreto que é nossa circunstância pessoal e familiar é partilhado. Por um pacto não verbal, entregamo-nos à confiança de que aquilo que é dito deverá ser guardado.
Despedimo-nos. Provavelmente, um momento destes não se repetirá, mas, apenas por este dia, a regeneração da alma aconteceu. Foi a poeira da neve ou as crianças que cantam no molhe? Que importa, quando a janela da alma está aberta de par em par para receber o ar abafado e preguiçoso do verão, a luz que dimana generosa, a voz de tempos imemoriais que se faz ouvir.


Pedimos hoje esse dom que recompõe o que em nós se foi desfigurando com o tempo. E que os sinos que tocam à beleza e ao amor não deixem de repicar na alma.

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