Eu e o Bruno

O Bruno é toxicodependente, alcoólico, pedinte. No caminho entre o trabalho e a minha casa, vejo-o muitas vezes. Já conversei com ele e já comprei alguma coisa para ele comer. Não é fácil conversar ou ajudar. Marcas da droga no seu rosto, o estado de aceleração motora permanente, falar sozinho em voz alta – tudo sinais de alguém em permanência fora de si.
O meu vizinho olha para ele e diz dos da laia dele: “essa gente mal-educada!” Não sei bem o que pensar disso. Parece-me que utiliza as categorias axiológicas da sua própria vida para constatar a desconformidade do Bruno com elas. Será o primeiro juízo a fazer, dizer que ele é mal-educado? Soa-me a uma incapacidade visceral de compreender o que é um ser humano caído na desgraça.
E eu?
Proponho ao leitor uma descida às minhas motivações mais profundas.
Se escolher o cenário A: o Bruno é um toxicodependente que vejo quase diariamente. Já conversei com ele, já comprei alguma coisa para ele comer. Rezo por ele e por tanta pessoas como ele. Vejo muita gente que o despreza e, ainda por cima, goza com ele. Não é justo. Gostaria de poder ajudar mais pessoas como ele (digo isto a mim mesmo e sinto-me consolado com este pensamento piedoso).
Se escolher o cenário B: a minha vida está a muitas milhas de distância da vida do Bruno. Há um fosso intransponível entre mim e ele. Eu sou uma pessoa educada, com formação académica e um profissional estimado. Tenha uma casa confortável e uma família. Tenho um círculo de relações sociais, interesses desportivos, culturais. Nunca fiz a experiência do que é ser um “outcast”. O Bruno é um exemplo-limite da degradação da condição humana. É um grito lançado à minha vida. Sem falar comigo, agarra-me pelos colarinhos e lança perguntas à minha vida com a sua própria vida. Estou demasiadamente bem “apetrechado” na vida que tenho para que possa aproximar-me do contexto vital do Bruno, quanto mais compreender o seu inferno. Não digo isto com sentimento de culpa. Não estou no plano moral, mas no plano antropológico. Por força da vida que temos, das escolhas que fazemos, estamos sempre mais próximos ou mais distantes de pessoas ou grupos sociais.
A questão ganha uma nova dimensão para aqueles que procuram viver na esteira de Jesus. Ele foi o verdadeiro “outcast”, o falhado por excelência. Ele foi o desconsiderado socialmente, aquele que não teve estatuto social. Não foi um “wannabe”, um “gold digger” ou um “social climber”. O seu “core business” foi estar com os brunos do seu tempo. Ninguém quer seguir nu o Cristo nu.
Olho para dentro de mim e reconheço facilmente os movimentos interiores de procura de estima, de afeto, da boa reputação. Encontro inveja e ressentimento contra os que fantasio que me fazem concorrência. Nada disto é novo e faz parte da natureza humana, da disfuncionalidade e fantasias mitómanas que nos habitam. Olho à minha volta, debruço-me sobre a História e lá estão os temas eternos: poder, fama, sexo, conquista, domínio, prestígio.
Então, quando passo pelo Bruno, posso facilmente adotar o cenário A e não deixar que a história desse farrapo humano belisque o meu caminho para Jerusalém na companhia do sacerdote e do levita da parábola.
No cenário B, esse pobre diabo, sem falar comigo ou me dirigir o olhar, desafia os fundamentos mais ocultos da minha mundivisão. Lembra-me o Mestre que sigo e o Mestre pergunta-me ainda e sempre de que lado da História quero estar. Bem gostaria de estar em cima do muro, assobiando para o lado.

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