
A palavra “cuidar” designa uma realidade com muitas virtualidades. Há palavras que designam realidades profundas e cheias de significado. Também há palavras “vazias” que nada ou pouco acrescentam. Quando digo vida, alegria ou esperança, sei como essas palavras apontam realidades profundas, muitas das quais guiam a nossa vida.
A palavra cuidar é uma dessas palavras. De entre as muitas direções para onde essa palavra aponta, gostava de explorar a dimensão do cuidado do outro no âmbito das relações que estabelecemos no dia a dia.
Vivemos tempos de perplexidade, de indefinição e de receio na forma como nos relacionamos uns com os outros: o “novo normal” parece ser um registo de violência, agressividade e ironia que tem um dos seus pontos altos nas gerações mais novas, mas não só. É verdade que “no meu tempo” também se faziam asneiras e sabíamos ser “mauzinhos” para com A ou B. No entanto, a omnipresença das redes sociais amplifica e vulgariza o registo de agressividade e de violência. E não falo apenas dos nossos alunos – aqueles que mais próxima e fervorosamente usam as redes sociais. A vida pública, política, social e mediática começa a ficar assustadoramente inquinada pela desconfiança, a mentira, o “hate speech”, os julgamentos sumários de intenção ou de carácter. Começa a proliferar o descuido pelo outro em nome de uma ideologia ou de um qualquer instinto pouco nobre. A descoberta de trinta e oito corpos de imigrantes encontrados mortos dentro de um camião é a expressão trágica do pouco valor que a vida e a dignidade humanas hoje correm o risco de ter.
A linha vermelha do “território proibido” não está visível – quando dermos por ela poderemos já ter ido longe de mais. É necessária vigilância para não descobrirmos que uma ferida ficou aberta no coração de alguém, quem sabe se para a vida.
“Chegamos sempre atrasados ao rosto do outro” – ouvi alguém citar um filósofo. Chego sempre atrasados ao rosto do outro que está diante de mim, porque esse outro é um mistério que não consigo decifrar cabalmente. Infelizmente, não poucas vezes a primeira reação é, metaforicamente falando, “disparar primeiro e perguntar depois”.
Como saímos desta espiral? Ao longo da História, comunidades, adultos, jovens e mesmo crianças ousaram levantar-se em nome da luta pelo bem, pela verdade e pela beleza. E os tempos presentes estão a pedir gente que se levante desenvolvendo o cuidado pelo outro, pessoas portadoras de verdade, mansidão e serenidade.
O grande cuidador que foi Jesus, apresentou na sua carta de princípios, num texto intemporal a que chamamos as Bem-Aventuranças, a proclamação da lei do amor como cimento e combustível das relações sociais. Um antídoto para as relações baseadas no poder, na dominação, no medo: são felizes os que têm um coração simples e pobre, os que promovem a paz, os que acolhem o outro como um ser simultaneamente ferido e sagrado.
São esses, efetivamente, que, no dizer do belo poema de Jorge Luís Borges, “Los justos”, “estão a salvar o mundo”.