Seguiram por outro caminho

No Evangelho segundo S. Mateus é narrada a história dos três sábios que vieram à procura do menino que acabara de nascer. Depois de lhe terem oferecido os seus presentes, diz-nos o texto que voltaram para as suas terras “regressando por outro caminho”. Porque o fizeram? Porque no caminho que tinham feito à procura da criança, foram interpelados pelo rei Herodes que, manhosamente, se mostrou interessado em saber o paradeiro de Jesus recém-nascido a fim de o ir, também, adorar.

“Regressaram por outro caminho”: eis uma expressão carregada de simbolismo. Os magos fizeram um percurso, seguindo uma rota, mas a experiência que viveram foi de tal modo intensa que, ao voltarem, só o poderiam fazer por um caminho novo.

Questiono-me se o caráter e a personalidade de uma pessoa se medem positivamente pela capacidade de permanecer fiel às suas convicções, valores e mundivisão. A resposta parece-me óbvia – tendemos a considerar que uma pessoa reta e de confiança é aquela que “tem coluna vertebral” e não cede a modas nem pressões. Essa visão é correta, digo eu.

Por outro lado, tendemos a considerar como um “invertebrado” aquele que muda segundo as circunstâncias, ao sabor do poder dessa entidade que chamamos “os outros” ou “a sociedade”. Dizemos, com desdém, que essa pessoa “não tem espinha dorsal”. Também não é mentira.

Ainda assim, quando ouço alguém dizer que “eu nunca mudei, fui sempre fiel a mim próprio”, fico com uma pulga atrás da orelha: será bom ou mau? Se calhar, até pode ser mau: quando observamos a vida, não é ela feita de tantas mudanças? Não estamos nós, quase permanentemente, a confrontar aquilo que é a nossa forma de pensar com o que nos chega através dos cinco sentidos? Não é a função da cultura ‘deslocar-nos’, mudar-nos de um ‘locus’ para outro? Não era a função do pedagogo na antiga Grécia conduzir o menino à escola, ao lugar do saber? E o que é aprender senão estar aberto a visões diferentes ou até opostas? Se quisesse ir ainda mais longe, não disse Heraclito, um dos filósofos chamados “pré-socráticos”: “tudo flui” e, citando livremente, “ninguém se pode banhar duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio”?

Imaginemos que alguém de Esquerda passa a ser de Direita. Qual será a nossa reação? ‘Vira-casacas’ ou ‘oportunista’. Estes mimos podem ser verdadeiros, mas podem não o ser. Noutros domínios, muitas pessoas mudaram radicalmente a sua vida, fruto de experiências intensas, traumáticas, significativas. Não consideramos isso uma traição à sua personalidade.

Fico mais assustado com as pessoas que ao fim de sessenta ou setenta anos a pisar esta terra, fundamentalmente não mudaram. Pessoas rígidas, inflexíveis, pessoas que não escutam os apelos que a realidade quotidianamente lhes vai fazendo. Pessoas tão só blindadas à realidade.

Uma das primeiras palavras que Jesus profere nos evangelhos é: “converte-te”. Infelizmente esta palavra está desbotada, desvirtuada, queimada. A palavra original grega “metanoia” é bem mais pregnante: uma mudança radical da nossa maneira de nos vermos a nós mesmos, aos outros, a Deus – uma transformação completa do pensamento.

Sim, podemos e devemos mudar. Não no sentido de nos trairmos a nós mesmos, de nos anularmos, mas sim de não termos medo de seguir o cherne, a metáfora do maravilhoso poema de Alexandre O’Neill, com que remato este texto e que exploro com os meus alunos. E eles, invariavelmente, chegam ao cerne do cherne.

Sigamos o cherne, minha amiga!
 Desçamos ao fundo do desejo
 Atrás de muito mais que a fantasia
 E aceitemos, até, do cherne um beijo,
 Senão já com amor, com alegria…

 Em cada um de nós circula o cherne,
 Quase sempre mentido e olvidado.
 Em água silenciosa de passado
 Circula o cherne: traído
 Peixe recalcado…

 Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
 Já morto, boiar ao lume de água,
 Nos olhos rasos de água,
 Quando, mentido o cherne a vida inteira,
 Não somos mais que solidão e mágoa…

Alexandre O’Neill

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