
Vivemos na certeza de que um dia morreremos, mas vivemos como se nunca fôssemos morrer. É uma espécie de ilusão ou delírio coletivo. A prova disso é a forma como fazemos planos e organizamos a nossa vida, dando tudo como garantido. Ou então, a quantidade de energia que despendemos nos nossos empreendimentos, o apego às pessoas que nos rodeiam, o exacerbamento de paixões como o ódio, a vingança, a adoração, a ansiedade por um objetivo. Vivemos numa espécie de labirinto mental e existencial, totalmente embrenhados e aturdidos.
As grandes tradições filosóficas e religiosas sempre nos alertaram para a inevitabilidade e imprevisibilidade da morte. Porque o fazem? Por que razão terão existido pensadores, sábios, santos, gurus que incorporaram no seu pensamento assim como na sua práxis, a constatação da inevitabilidade da morte?
A resposta superficial é a de lhes dar, por atacado, um pontapé e chutá-los para um canto, dizendo que são pessoas primitivas ou doentes ou mórbidas ou infelizes. Buda, Séneca ou o autor do livro da Sabedoria vão pelo ralo. E aí seguimos nós, cheios de chavões sobre a vida, sobre “viver o momento presente”, sobre o sucesso e realização pessoal. Tudo isso são razões nobres e belas. O erro, parece-me, é que todo o edifício da nossa vida está construído sobre o mito da eternidade e da omnipotência. Racionalmente, cada um, a começar pelo estimado e avisado leitor, sabe que vai morrer. Mas, visceralmente, vivemos como se tal não fosse acontecer. Não apenas achamos, na prática, que não vamos morrer, como achamos que, a morrermos, isso acontecerá num futuro longínquo e inofensivo.
Mas, porque será que tantas correntes de pensamento de sabedoria incorporaram na “arte de bem viver” a consciência da morte?
Em primeiro lugar, porque essa é verdade. Quem já tiver “uma certa idade”, com dizia a minha avó, já terá feito ou sofrido a experiência da morte de pessoas conhecidas. E, se calhar, já foi surpreendido com a morte de pessoas queridas. E, quem sabe? com a morte inesperada de pessoas cujo ciclo nesta vida apenas começara ou não se completara. E quem já fez essas experiências, como eu abundantemente na minha vida, sabe que, por vezes fica um travo muito amargo por não termos dito o quanto gostávamos delas ou termos “adiado o coração para outro século”, com escreveu António Ramos Rosa. E porque o fizemos? Porque tínhamos incrustado nos nossos ossos a ilusão que essas pessoas ali estariam.
Em segundo lugar, porque a meditação e a consciência da morte, transfiguram a forma como lidamos com a vida: alteram as nossas prioridades, relativizam os aspetos secundários, introduzem um sentimento de urgência, paixão e intensidade, procurando “sugar o tutano” (como disse Thoreau) de cada dia. Talvez seja essa sensação de provisoriedade que experimentam as pessoas que vivem em zonas de tremor de terra ou de guerra iminente. Elas é que estão certas.
Tudo somado, a primeira preparação, a primeira gramática para falar e viver a morte, decide-se, no nosso “modus vivendi”. Como disse, há uma sabedoria que os místicos e santos cristãos nos oferecem: eles meditavam sobre a morte para viver melhor.
Lembro uma frase da carta aos Hebreus: “Todas estas coisas aconteceram para nos servir de advertência”. E a advertência é sempre a mesma: cuidado com a forma como vives, como tratas os vivos, não vá o teu coração ser presa do imaginário e todo esse filme que se desenrola diante dos teus olhos não vir ser mais que uma quimera. Como disse S. Macário: “É grande o perigo de estarmos a ser artesãos do nada”.