
Perdemos a importância dada à memorização. Durante muitos séculos, o património cultural de uma geração passava para outra geração através da oralidade. E, à força de as histórias serem repetidas, fixavam-se na memória de cada um e da comunidade.
Hoje, desconfiamos da memória e queremos compreender tudo. A memória tornou-se uma ferramenta de segunda categoria: “Tenho que decorar isso?”. Parece menos inteligente do que querer compreender.
A verdade é que a repetição com vista à memorização é vital. Se partirmos do princípio que os textos nos resistem, que se ocultam e são parcimoniosos no seu desvendamento, será à força de os repetirmos que, de forma lenta e quase impercetível, nos vamos apropriando da profundidade do seu significado. É isso que acontece quando estamos a ver um filme pela segunda, terceira ou, quem sabe, quarta vez: há pormenores novos que apenas reparamos pela repetição da visualização desse filme. O mesmo se passa com a leitura: basta experimentar repetir a leitura de um texto uma segunda ou terceira vez para o seu significado se tornar mais claro e completo.
Esta realidade é flagrante no campo da poesia: é difícil dizer que se compreende um poema quando se leu silenciosamente uma única vez: ficamos apenas “pela rama” do seu significado. O ideal será sabê-lo de cor. A expressão “saber de cor”, remonta ao latim: cor, cordis – que significa simplesmente saber “com o coração”. E “coração”, entendido não no sentido sentimental, açucarado, mas como o órgão vital que nos permite apreender a realidade de uma forma mais total do que simplesmente ao nível da faculdade racional.
Exemplifico o que acabo dizer no campo da liturgia: aí, os crentes repetem uma vida inteira as mesmas orações, os mesmos salmos, os mesmos hinos. Esses textos parecem inesgotáveis – e são-no, na realidade. Para aqueles mais familiarizados com a gramática cristã, sabemos que essa liturgia diária é expressão da Bíblia, palavra de Deus e é sempre nova, como cada acontecimento novo que vai entretecendo a nossa vida.
Por isso, nada de receio em usar e abusar a memória! Quando repetimos indefinidamente um poema ou uma oração, lenta e impercetivelmente, eles penetram as camadas mais profundas daa nossa mente, da nossa alma, do nosso coração. E há segredos que apenas se revelam depois de muito termos batido com o bastão na rocha: só então jorra a água que mata a sede e consola o coração do caminheiro.
Ah! E se tudo isto for feito em voz alta, lenta e atentamente, então tudo se multiplica por dez, cem, mil. Sem darmos por ela, estaremos às portas de um mundo belo, denso e fecundo.