As “apropriações tranquilas”

Ouvi esta expressão há já muitos anos a um padre, poeta e místico, José Augusto Mourão, frade dominicano. A princípio, não compreendia a frase. Parecia-me estranha e enigmática, como muitas coisas que o Frei José Augusto dizia.
Mas ele sabia: a linguagem religiosa, a linguagem da fé é veículo de realidades extremamente poderosas. Isto não acontece em todas ou na maior parte das áreas da vida. Há palavras, textos, artigos, livros que pertencem ao domínio técnico ou científico e todas essas escrituras esgotam-se no ato de ler. Naturalmente, que podem fazer-nos pensar, podem levar a decisões ou mudanças de percurso, mas as palavras em si não são pregnantes (“grávidas” de sentido). Na poesia ou na filosofia, aproximamo-nos mais desta pregnância: parece que as palavras, as ideias são profundas e quando a elas voltamos novos sentidos vamos descobrindo.
Na vida da fé esta realidade é superabundantemente verdadeira. A linguagem da fé, a Sagrada Escritura são mediações que evocam realidades. Quando digo “Deus é amor” ou “Deus é o Criador do Céu e da Terra”, qualquer uma destas frases tem um tremendo significado. Dizer que “Deus é amor” é visceralmente diferente de dizer “O Porto joga na quarta feira”.
O crente que diz: “Deus é amor” di-lo a partir de onde? Que consciência, que experiência vivida tem ele daquilo que verbaliza? Será essa palavra um ‘pensamento-pensado’, um truísmo que repetimos ou será uma palavra que foi “provada no fogo”, o resultado de uma experiência em que o crente foi queimado, marcado a fogo por essa realidade?
Quando digo que “Deus é o Criador do céu e da terra”, que digo eu? Algo que me ensinaram e, então, eu sou um “relógio de repetição”, dizendo esta frase com a mesma frieza com que digo “o Pingo doce abre às nove”? Ou digo esta palavra a partir de uma experiência avassaladora na qual o mundo não é apenas um objeto belo que “está aí”, mas a epifania assombrosa da grandeza e do cuidado de Deus?
Voltando ao início, as tais “apropriações tranquilas” são a torrente ininterrupta de discurso religioso na qual se fala, escreve, prega, reza e canta sobre as verdades mais profundas da fé sem o mínimo de estremecimento interior ou comoção da alma… E as pessoas, que são sensatas dizem: aquele padre/ catequista/ irmã/ pregador parece um “papagaio a falar”: as palavras são ocas e vazias. Apropriaram-se tranquilamente de um tesouro, falam dele, mas não abriram sequer a arca onde ele está.
Parte da crise da religião e da linguagem religiosa passa por isto: falamos de coisas decisivas como se elas nos fossem estranhas; consolamos a família enlutada com palavras de ressurreição, mas a fonte de onde brotam essas palavras está seca.
Jacob lutou toda a noite com Deus no escuro, até de madrugada. Quem dera que os seguidores do Cristo falassem a partir do fogo.

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