Um homem das Terras Altas

Voltei a acordar cedo. Sei que se me levantar rapidamente, me consigo organizar de forma a fazer a caminhada maior: descer a avenida até à rotunda e regressar – não chega a uma hora, mas adoro a cidade deserta, galos e pássaros e carrinhas do pão e sinos.
Quando faço a caminhada mais longa, vou alternando a forma como ocupo o tempo: rezo, ligo-me aos meus sentidos, observo, ouço, respiro. Outras vezes, e foi o caso deste dia, ouço podcasts: uma forma de aprender, conhecer coisas novas fora do radar habitual de interesses.
Um dos podcasts que ouço é o da revista inglesa “The Spectator“. Têm vários formatos. Aquele que ouvi hoje chama-se: “Book Club“. Desta vez, o entrevistado é um escritor que ganhou recentemente um prémio, o Booker Prize. Não conheço nem tinha ouvido falar do escocês Douglas Stuart.
Gosto de ouvir personalidades públicas que têm histórias para contar, com vivências interessantes: procuro pessoas que sejam dissonantes, peculiares, que tenham um olhar que questionem a “normalidade”.
E este podcast não foi exceção. Desde logo, marginalmente, pelo sotaque escocês do escritor, pela forma serena, comedida, objetiva e até humilde como fala. Para além disso, e de forma mais substantiva, pela forma corajosa como fala do seu passado de pobreza, da sua mãe alcoólica, mas adorável, que o marcou definitivamente, como foi duro crescer nos bairros pobres de Glasgow, onde, numa escola com mais de 250 alunos apenas 12 conseguem chegar ao Ensino Superior.
Esta franqueza sensibiliza-me: não vivemos hoje a corrida insana para nos pormos em bicos de pés e gritarmos “estou aqui”? Não queremos projetar uma imagem de beleza, de força, de qualidade, sobre nós e a nossa envolvente? E, no entanto, eis alguém que desarma pela sinceridade e coragem com que fala do seu passado. (Noto que, frequentemente, as figuras públicas do mundo anglo-saxónico não têm problema nenhum, em falar de um passado doloroso ou em revelar traços de carácter, afinal humanos, mas que tendemos a achar pouco recomendáveis aos olhos dos outros. Bravo Douglas!)
De entre as várias coisas que o escritor foi referindo relativamente ao seu primeiro e premiado livro (“Shuggie Bain”) impressionou-me o facto de o manuscrito ter sido rejeitado mais de trinta vezes. Trinta vezes! Que faria eu se me rejeitassem o que quer que fosse duas ou três vezes? Douglas diz que o passado duro que teve o tornou forte; encara os “nãos” com naturalidade e como parte do processo; afirma que sem essa consciência de que seremos ocasionalmente rejeitados no mundo literário, não é possível ser um escritor.
Finalmente, apreciei a honestidade com que o nosso “Scottish piper” afirmou que, durante os doze longos anos que demorou a escrever o seu livro, muitas vezes duvidou de si afirmando que uma pessoa com o seu passado, que não teve educação literária (tendo começado a ler regularmente apenas aos 17 ou 18 anos) nunca poderia ser um escritor.
Ao ouvi-lo afirmar a sua insegurança não pude deixar de fazer um excurso a partir das suas palavras: o que nos terá acontecido a nós humanos, para termos dentro de nós este desassossego e tantos outros desassossegos em relação a nós mesmos? Donde vem este “inimigo às portas”, quem o fez habitar dentro de nós? O que nos tornou feridos e desamparados a ponto de fazermos combate a nós mesmos?
Felizmente, o nosso homem do país das Terras Altas não desistiu! Com toda a fragilidade, vulnerabilidade e dor, criou combustível para dar ao mundo uma, obra quase autobiográfica, que, oxalá, inspire e comova os seus leitores.
https://www.spectator.co.uk/podcasts/book-club

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