
O papa João XXIII disse um dia: “Sou como um pássaro que canta entre os espinhos”. É interessante a junção do canto e dos espinhos. Quem esteja familiarizado com o Cristianismo sabe que, ao convocar o Concílio Vaticano II, o papa enfrentou tremendas oposições e dificuldades.
As nossas vidas também estão cheias de espinhos. Na minha adolescência, ouvi um psiquiatra dizer que a vida é um mar de espinhos com algumas rosas pelo meio. Na altura, a frase pareceu-me pessimista. Com o passar dos anos rendi-me à evidência: tantos obstáculos, ruturas, incompreensões… a morte de familiares, este e aquele plano desfeitos.
Poderão todas as pessoas dizer o mesmo? Não sei… creio que todos temos exemplos à nossa volta de pessoas que prosperam, que não têm problemas de monta, a quem tudo parece sorrir. Não posso fazer juízos de valor e muito menos fazer de Deus pretendendo uma resposta para a vida de cada um.
Para além dos espinhos por onde já me piquei, também fui entretecendo algumas ideias sobre o que é a vida. Observo as pessoas, os anos vão avançando e vão dando aquilo que chamamos , de “experiência da vida”. Há muita imprevisibilidade e surpresas. Podemos consolarmo-nos com a ideia de que controlamos os acontecimentos, mas a novidade e o imprevisto rondam sempre e atacam sem aviso prévio.
Basta olharmos para um dos nossos dias com minúcia: raramente os planos que fazemos se cumprem na exata medida em que os antevimos. E, se assim é para apenas um dia, quanto mais o poderíamos dizer para uma vida? Olhando para trás, nunca nos meus melhores sonhos poderia dizer que na duração da minha existência as coisas correram “como o previsto”.
Esta realidade toca outra: a de que temos de lidar com os imprevistos, sobretudo as más notícias, o desconforto, a morte de familiares ou amigos, uma rutura afetiva. E era aqui que queria chegar, depois deste pequeno excurso sobre a “dança da vida”: que fazer quando o dilúvio se abate sobre nós?
O papa dá a sua própria receita: cantar. Um canto que não brota do conforto, da segurança ou da paz.
De onde virá, então, a força para podermos transformar em canto o nosso corpo macerado?
Uma vénia a todos os que no silêncio da sua vida se ergueram acima da sua circunstância e com a combustão da sua própria ferida aberta, lançaram para diante o canto que acorda todas as “madrugadas do amor”. Teremos tido a sorte, na nossa vida, de nos cruzarmos com uma avó, mãe ou amigo que sorriram, por cima e apesar de tudo?
“Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.“
Sophia de Mello Breyner
“Que fazes tu, poeta? Diz! — Eu canto.
Mas o mortal e monstruoso espanto
Como o suportas? — Canto.
E o que nome não tem, tu podes tanto
Que o possas nomear, poeta? — Canto.
De onde te vem o direito ao Vero, enquanto
Usas de máscaras, roupagens? — Canto.
E o que é violento e o que é silente encanto,
Astros e temporais, como te sabem? — Canto.“
R. M. Rilke